Preciso começar este texto dizendo que sempre acreditei e sonhei em ser mãe. No entanto, amar e cuidar de um ser humano depende de desejo e de decisão consciente. É preciso querer amar e cuidar, isso não é natural, não acontece para todas as pessoas e, na maioria das vezes, quem decide é uma mulher.
Depois de ter vivido num relacionamento por mais de sete anos — que começou lá quando eu ainda tinha dezenove, e de ter me mudado de Estado, me afastando de amigas/os e familiares, eu persisti com a minha decisão: — Vou ser mãe! Com data estimada e um desejo muito nítido. Acredito que foi isso mesmo que fez com que esse relacionamento terminasse, atitude tomada não de minha parte, naquele momento.
Ok, volto para o meu Estado e para perto dos meus familiares e concebo uma filha maravilhosa, o amor da minha vida, criança que me permitiu ter minhas primeiras e únicas experiências, digamos, extranaturais. Enquanto ainda estava grávida eu a vi, eu a vi em meu útero.
Era um dia de verão, estávamos em uma chácara, eu havia tomado água com gás e maracujá, então me deitei ao lado das crianças brincando numa piscina de plástico e entre estar acordada e adormecida essa primeira visão em preto e branco aconteceu. Quando ela era um bebê de colo tive uma segunda visão, também no que poderíamos chamar de “sonho”, ela apareceu pra mim com uns dois anos, assim, do jeitinho que ela veio a ser nessa idade.
Quando faço esse retorno para o Estado em que nasci e para uma convivência maior com as pessoas que me cercavam antes de eu ter entrado no relacionamento que mencionei, essas antigas relações nucleares não estavam tão sólidas, as coisas eram confusas e eu me sentia sozinha, mesmo gestando minha filha. Com o tempo, fui entendendo que seríamos eu e ela e, para que ela pudesse ser feliz, eu teria que me converter em uma comunidade inteira.
Assim foi, fiz o meu “resguardo” levantando todas as vezes em que ela chorava, me mantendo acordada, esfregando no tanque as roupinhas sujas de mecônio, estendendo-as e carregando o varal de chão para fora de casa. Enfim, fazendo tudo o que eu não deveria estar fazendo, pois deveria estar resguardada. Só que eu era a comunidade dela, eu sou a comunidade dela. Segui fazendo tudo, por conta própria, que era e é necessário para zelar e cuidar do desenvolvimento de uma criança pequena.
Apesar de, estando vulnerável durante a gestação, eu ter reatado aquele relacionamento, que só veio a ser mais próximo perto do parto, pois ao longo do pré-natal fui eu, mãe comunidade inteira, agindo, peregrinando, buscando e encontrando uma ajuda aqui e outra ali para me deslocar até a maternidade para ser examinada tanto no acompanhamento de rotina quanto em situações adversas em que me sentia mal por estar trabalhando em um ambiente fechado sem ventilação, mais precisamente, no estoque de uma loja de roupas femininas dentro de um shopping.
Relações que buscassem por mim, por nós, ou que procurassem saber como estávamos e oferecessem ajuda não eram muito comuns. Existia sim uma pequena rede de apoio, para emergências, isso não posso negar, mas a sensação de ter de ser comunidade, no fim das contas, é assustadora.
Foquei no compromisso e no desejo de maternar e de zelar por todas as roupinhas dobradas carinhosamente, depois de higienizadas e passadas, o que dá trabalho, sem falar na lavagem e manutenção das fraldas ecológicas que foram essenciais, porque meus recursos também não eram lá grande coisa e eu precisava economizar, inclusive no que tem a ver com a amamentação. Quando me vi sofrendo com dores e dificuldade no aleitamento materno dos primeiros meses, nem poderia cogitar substituí-lo pela administração de fórmulas industrializadas.
Tive que suportar dores que eu nunca tinha sentido, nem durante o parto. Parto esse que foi planejado, humanizado, silencioso e na banheira, pelo Sistema Único de Saúde, acompanhada de uma só enfermeira, que relatou nunca ter presenciado um nascimento tão silencioso e tranquilo. Me preparei psicologicamente para isso, pensando que ele poderia ser natural e até prazeroso, o que, na medida do possível, se realizou.
Bom, a sensação de solidão permanecia, mesmo estando de novo naquele relacionamento, convivendo sob o mesmo teto, demorei três anos para pôr um fim definitivo no que era ter de ser mãe solo, extremamente sobrecarregada, estando casada. Três anos para ter a coragem de encerrar esse ciclo de mais de uma década de um relacionamento que não estava sendo saudável para mim, pelo medo de ele não ser saudável para minha filha.
No dia do nascimento dela, meu pai estava na cidade que hoje eu moro, assumindo em meu nome uma vaga no serviço público por meio de uma procuração. Eu só fui capaz de dar a luz à ela quando soube que essa vaga de emprego estava garantida. Tendo um emprego, pude então ter minha filha nos braços. Mudei de cidade novamente, depois dos 40 dias de resguardo, logo veio a pandemia e não consegui melhorar e/ou restabelecer aquelas relações que haviam sido minadas, pois hoje entendo, que eu tinha sido afastada das pessoas que me amam, pela toxicidade presente no meu antigo relacionamento “romântico” e por uma necessidade do meu ex-marido de me manter isolada na tentativa de diminuir as minhas forças.
Apesar de tudo, a minha decisão de maternar me fez imparável. A maternidade me multiplicou, me povoou, me fortaleceu e me permitiu perceber que eu não só posso, como eu talvez tenha nascido com um dom, o dom de ser comunidade para um ser que, por pelo menos seis anos, foi dependente de atitudes constantes de servidão, de acolhimento e de proteção. Sou grata por poder criar uma menina esperta e saudável e sou grata por ter escolhido amar e ser amada.
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Thais Matos / @la.thaismatos





