O idioma era outro, o fuso horário também. Quando o relógio da terra estrangeira marcou meio-dia na hora local e os raios solares de inverno tocaram o branco da neve acumulada no chão lá fora, notei que estava em um quarto diferente de tudo que eu conhecia.
No banheiro daquela suíte havia uma enorme jacuzzi, tão branca quanto o chão que eu pisava, cheia de uma água morna que, na noite anterior, envolvera meu corpo em contagem regressiva para a inauguração do que a psicanalista e autora Ana Suy chama de um (novo) vazio.
Em A corda que sai do útero, a escritora diz que o útero é um vazio só depois que alguém esteve lá e o nascimento de um filho é a inauguração de um (novo) vazio. Eu não conhecia vazios naquela Pátria. Não enxergava o vazio, não dava tempo, não havia tecla SAP, nem legenda. Não era um filme com cores de Almodóvar. Ao contrário, os tons azul pastel e branco tomavam a roupa e os pares de Crocs nos pés de médicos e enfermeiros que entravam e saíam do quarto.
O picolé de mirtilo era azul pastel. Enfermeiras se revezavam em turnos me oferecendo gelatinas e picolés para que eu chupasse enquanto subia e descia escadas com o intuito de auxiliar no meu trabalho de parto, juntamente com as massagens na jacuzzi. Ajuda na dilatação, elas diziam.
Naquela Pátria eu via um mundo inteiro BI. Bicolor e bilíngue. Bicolor dentro (azul pastel e branco). Bicolor fora (branco e cinza da paisagem invernal) e bilíngue do Inglês e do Francês. Naquela Pátria, antes do vazio veio uma gestação de 42 semanas. Antes do vazio, 24 horas em trabalho de parto. Antes do vazio, um parto normal no segundo melhor hospital do Canadá e um dos 100 melhores do mundo. Antes (ou será depois?) do vazio, 20 meses de amamentação.
Era 12 de janeiro de 2010 quando dei à luz ao meu primeiro e único filho no North York General Hospital em Toronto. O hospital é escola e o meu parto foi aula. A aula para os residentes do curso de Medicina da Universidade de Toronto. Enquanto o obstetra finalizava a explicação e mostrava aos seus alunos “a bela e saudável placenta’’ que eu acabara de parir com o auxílio dos atenciosos enfermeiros, eu recebia as primeiras lições práticas sobre amamentação.
Foi quando, imediatamente após o parto, meu filho foi colocado contra o meu peito nu. O tempo parou. Talvez tenha sido ali que eu tenha sentido pela primeira vez o vazio ao qual Ana Suy se refere. Não sei ao certo.
Minhas aulas práticas se sucederam às teóricas oferecidas gratuitamente pelo Toronto Public Health durante toda minha gestação. Nas clínicas públicas de amamentação mantidas pelo órgão de saúde Canadense, fiz cursos, assisti a palestras e, ao enfrentar as primeiras dificuldades no início da amamentação, tive suporte emocional, orientação profissional e visitas de especialistas em amamentação em casa.
E, no primeiro dia em casa com meu filho, recebi ligação de uma enfermeira do Toronto Public Health me perguntando se estava tudo bem comigo e se eu precisava de auxílio para amamentar. Eu precisava. Eu precisei de muito auxílio! Todas as mães podiam ligar para um 0800 e tirar dúvidas. Eu liguei. Tirei dúvidas. Esclareci algumas, nasceram outras, até que o mamilo direito rachou!
O parto foi normal como eu desejava, mas a amamentação não foi natural desde o início, como fui levada a crer pela romantização em torno do assunto, especialmente no Brasil de 2010. No entanto, eu não estava na Pátria em que fui parida, estava na Pátria que me pariu, a mesma que já havia me parido diversas vezes, desde 2006 como imigrante. Em 2010 me pariu mãe!
Quinze anos e um filho adolescente saudável depois, vejo que só consegui enfrentar as primeiras dores (físicas e emocionais) do início da amamentação e continuar por quase dois anos porque um time de especialistas estava ao meu alcance, junto com meu parceiro de vida que foi muito presente e conseguiu me apoiar para que eu passasse pelo sofrimento durante o início daquele (novo) vazio sobre o qual a psicanalista Ana Suy discorre em seu livro A corda que sai do útero.
Mas afinal, qual Pátria (te) me Pariu? Olho para trás e concluo discordando dos Titãs quando compuseram Lugar Nenhum em 1987: “Não sou de São Paulo, não sou japonês, não sou carioca, não sou português, não sou de Brasília, não sou do Brasil, nenhuma Pátria me pariu!”.
De todos os vazios que minhas andanças além-Pátria deixaram em mim, sigo aprendendo que duas Pátrias me pariram! Uma Pátria me pariu jornalista, assessora de imprensa, corredora de meias maratonas, educadora. A outra Pátria me pariu sonhadora, voluntária, mulher, mãe, comunicadora e, acima de tudo, ambas as Pátrias seguem me parindo escritora!
_
Autora: Paula Mazulquim / @leiakpaula





