Depois de muito tempo, ela me encarou pelo espelho, exigindo que eu a olhasse. Chorei vulnerável, enquanto as promessas do passado se repetiam na minha cabeça:
_ Ficou muito bem feita, sequer vai aparecer quando você estiver de biquíni.
E, anos depois:
_ Ela é muito experiente, fez o corte bem em cima do primeiro. No fim, você vai ficar com uma cicatriz apenas.
Na verdade, eu não estava nem um pouco preocupada com a marca externa daquilo. Só conseguia pensar no que uma desconhecida havia me falado quando eu nem pensava na possibilidade de ser mãe:
_ Uma cesárea marca a vida de uma mulher para sempre. Chorei novamente. Ela estava coberta de razão.
Aquela foi a primeira vez em 8 anos que consegui encarar aquela marca sem medo, sem culpa, sem pesar. Foi como se estivesse me abraçando, acolhendo as dores que só eu conhecia.
Até então, a dor se confundia com o medo de ser julgada. E eu me calava. O peso ora enorme, ora era invisível demais para ser levado a sério, inclusive por mim.
Com a primogênita, foram mais de 24 horas de tentativa, com direito a inúmeras contrações, cada uma mais dolorida que a outra e a transferência de uma Casa de Parto para um hospital.
Ao longo de 9 meses eu havia projetado um parto natural respeitoso, com direito à trilha sonora, banheira, bola e tudo o mais. Imaginei por várias vezes que eu estava amamentando a minha filha logo na primeira hora. Com o avançar das horas e da dilatação, eu ficava mais e mais ansiosa.
Não soube lidar com a frustração de uma cesárea e com a negligência hospitalar que me deixou afastada da minha filha cerca de 8 horas porque me esqueceram na sala de parto. Acredite: Havia apenas uma equipe médica e duas parturientes. Eu, a despeito das longas horas de trabalho de parto, passei por uma cirurgia tranquila e sem intercorrências. Já a outra teve um parto difícil, mas nada me faz entender como puderam simplesmente me esquecer enquanto a atendiam.
A assistência ao parto no Brasil é um território de tantas incertezas que, até hoje, não sei se a cesárea foi realmente necessária ou se fui mal assistida. E essa dúvida foi solo fértil onde cresceu toda a minha culpa.
Cinco anos depois, engravidei novamente. O cenário da segunda gestação foi completamente diferente. Atravessando uma pandemia e aos 39 anos, não tive oportunidade escolher onde e com quem fazer o pré-natal. O acompanhamento aconteceu todo num hospital escola, com uma médica que me dizia que a cesárea anterior e a minha idade não seriam impeditivos para um parto natural, se assim eu desejasse.
Embora algo me dissesse que tudo se repetiria, escolhi tentar novamente. Batendo à porta das 41 semanas, fui atendida por um médico já que a que me atendia estava num congresso:
_ Vamos marcar a cesárea? – Ele sugeriu diante de uma sala cheia de alunas.
_ Não. Respondi.
_ Então, não entre em trabalho de parto no meu plantão, muito menos à noite, porque vou deixar você sofrer.
As alunas riram enquanto eu tremia inteira, sentindo a humilhação me consumir. Não sei de onde tirei coragem para responder, com a voz embargada de pela revolta:
_ Fique tranquilo que isso não vai acontecer.
Voltei para casa atônita, me sentindo desamparada. No dia seguinte, entrei em trabalho de parto. Felizmente, ele não estava no plantão e isso já foi um alívio.
Depois de uma noite inteira de contrações, finalmente fui atendida por uma enfermeira gentil, que ficou ao meu lado, orientando as respirações e massageando as minhas costas.
Lá pelas tantas, fui atendida por uma médica que me explicou o que havia acontecido na primeira gestação e o que estava acontecendo naquele momento: a dilatação evoluiu, mas havia uma falha na progressão da descida fetal. Poderíamos aguardar um pouco mais. Mas eu estava cansada, implorei por uma cesárea e ela concordou, dizendo que era o mais adequado.
Novamente, fiquei sem saber se foi uma necessidade ou uma conveniência médica. Por muito tempo me perguntei se, ao invés de concordar com a cesárea, ela não deveria ter me incentivado a esperar um pouco mais. E se eu tivesse tido acesso a recursos para aliviar todas as dores?
Enquanto me levavam para o centro cirúrgico, eu chorava copiosamente. Toda aquela avalanche de culpa parecia pesar 500 quilos sobre mim. Durante aquele trajeto, eu não sabia, mas estava vivendo uma “cesárea humanizada”, se assim pode-se dizer.
A sala estava repleta de alunos, candidatos à obstetrícia, pediatria e anestesiologista, todos respeitosos de forma que não me senti invadida.
Desta vez, tive minha filha em meus braços assim que nasceu. A mesma enfermeira que me acolheu se preocupou em imprimir a placenta, registrando os votos de felicidade da equipe. A médica fez questão de me acompanhar, mesmo fora do hospital escola, solidária.
E assim, tive duas cesáreas, duas experiências completamente distintas que, de fato, me marcaram a vida inteira.
Apesar de ter experimentado um cuidado diferente na segunda vez, eu ainda não estava curada. Ainda não conseguia encarar as duas marcas, uma se sobrepondo à outra, se tornavam maiores que eu.
Naquele momento, olhando a tênue linha desenhada em meu ventre, um feito preciso de uma médica que se preocupou em não deixar uma segunda cicatriz visível, me enxerguei por dentro. Por baixo da pele, emergiu a consciência de que não se trata de apenas uma linha, mas sim de dois caminhos que se entrelaçaram no mesmo ponto e através de mim.
Cada milímetro guarda duas memórias, dois nascimentos, duas reconexões. Uma sobre a outra testemunha que nossas vivências mais intensas são guardadas nas entranhas e tecidas, contraditoriamente, com fios imperceptíveis aos olhos do corpo.
Enfim, percebi que tudo foi da maneira que tinha que ser, que cada desafio, cada lágrima, cada dúvida me tornam inteira. Naquele reflexo, eu pari a mim mesma porque acolhi a minha história, escrita no meu próprio corpo.
Por Patricia Urruzola – @patricia.urruzola





