Sopro de vida: Uma escrevivência de maternidade, dor e renascimento, Marielli Meireles de Vasconcelos – @mariellimeireles
Escrevivência de uma mãe: entre dor, amor e renascimento
Este relato é uma escrevivência, no sentido proposto por Conceição Evaristo (2019): uma escrita que emerge da carne, da memória e das dores que marcam a existência da mulher negra. O que se segue é mais do que um relato — é um testemunho de vida, de superação e de amor, tecido a partir da experiência da maternidade atravessada por violências, resistências e reconstruções. Esta narrativa também denuncia, cura e afirma uma subjetividade que insiste em florescer, mesmo nos solos mais áridos.
Minha gravidez não foi planejada. Foi fruto de uma violência. Alguns homens ainda não entendem — ou se recusam a entender — que “não” é uma palavra completa, suficiente e definitiva. E, quando ela não é respeitada, abre-se uma ferida — não apenas no corpo, mas na alma.
No início, senti mil sentimentos ao mesmo tempo, sendo o mais intenso o da culpa. A culpa que, injustamente, recai sobre a vítima. “E se eu não tivesse entrado naquele carro?” — esse pensamento me perseguia como um fantasma.
Mas, a partir daquele momento, já não era apenas eu. Éramos nós duas. Medos, insegurança, desespero… tudo se tornou mais intenso.
O processo de gestar é profundamente individual e, para mim, foi doloroso e solitário. Enfrentei a carência afetiva, o abandono e a dureza física de uma gravidez que me apresentou todos os sintomas possíveis: quatro meses de enjoo constante, três meses de hormônios descontrolados e enxaquecas intensas, dois meses de azia implacável. A maternidade, nesse momento, parecia mais um campo de batalha do que um jardim florido.
Minha maior preocupação era com o básico. Temia não ter o essencial para aquela vidinha que crescia dentro de mim. Além disso, enfrentei o distanciamento de muitos e o julgamento de tantos outros. A solidão era quase tão presente quanto os chutes na barriga. E, ainda assim, aquele pequeno sopro de vida me conquistava a cada dia. Eu, que nunca sonhara em ser mãe, comecei a sonhar com ela. Todos os meus projetos de futuro passaram a incluí-la.
Durante a gravidez, busquei afeto onde não havia. Entrei em um relacionamento conturbado e violento. Quase perdi meu pequeno sonho. O medo me mantinha ali. Porque, na escassez, até o pouco — ainda que seja dor — parece tudo.
Mas a maternidade exige escolhas. E escolher minha filha foi o ato mais difícil e mais libertador da minha vida.
O parto chegou. E, com ele, novas dores e violências. Como mulher negra, minha dor foi invisibilizada por 23 horas de trabalho de parto. As violências obstétricas se acumularam: procedimentos sem consentimento, negligência, descaso. Duas vidas por um fio. Mas resistimos. E o encontro foi possível: eu e minha pequena, finalmente juntas.
A amamentação foi um novo campo de batalha. O corpo que havia sido território de tantas lutas agora era refúgio e sustento. Doía. Doía fisicamente e emocionalmente. Eu não me reconhecia. E, ao mesmo tempo, uma pequena vida me exigia inteira.
O cansaço se tornava insuportável. E mesmo após tantas tentativas de parto normal, a cesariana foi o desfecho. Sem rede de apoio, sozinha, em um estado distante da minha família, enfrentei o puerpério com coragem emprestada da necessidade.
Tarefas simples, como tomar banho ou levar minha filha para vacinar, tornaram-se torturas físicas e psicológicas. Não havia descanso. Mas uma mãe tira forças de onde não existem.
A sociedade, que tão rapidamente critica cada escolha da mãe, raramente estende a mão para ajudar. Palpites vinham de todos os lados. Apoio, quase nenhum.
Minha filha nasceu com APLV — alergia à proteína do leite de vaca. Aprender sobre essa condição e adaptar minha alimentação para manter a amamentação exigiu ainda mais de mim. Era uma dieta restrita, cansativa e solitária. Meu corpo era alimento e remédio. O amor, no entanto, crescia junto com os desafios.
Minha maternidade foi — e ainda é — um processo doloroso. Mas também é um processo de renascimento. De cura. De amor reinventado.
Ver minha filha crescer, se desenvolver e hoje — aos quase três anos — me dizer “eu te amo, mamãe” é a prova de que, mesmo entre erros e acertos, estou no caminho certo. Escolhi amá-la. Escolhi lutar por nós duas. E continuarei escolhendo.
A maternidade, como vivida por mulheres negras em contextos de violência e exclusão, precisa ser dita, escrita e escutada. Como afirma Evaristo (2019), nossas histórias não são ficção — são vivências atravessadas por memórias, ancestralidades e lutas.
Esta escrevivência não busca aplausos, mas sim o direito de existir, resistir e ser reconhecida.
Com o passar do tempo, fui entendendo que ser mãe também era um processo de me resgatar a mim mesma. Entre fraldas, choros e noites sem dormir, fui me reconhecendo não apenas como cuidadora, mas como mulher. Uma mulher que carrega cicatrizes — mas também força.
Aprendi a me olhar com mais gentileza, a acolher minhas falhas e a celebrar pequenas conquistas. A maternidade me ensinou que não há manual nem perfeição — há presença, entrega e amor real. Aquele que se constrói no cotidiano, mesmo cansada, mesmo em silêncio, mesmo doendo.
E é nesse espaço íntimo entre a dor e a esperança que sigo construindo a mulher e a mãe que quero ser.
Que cada palavra aqui escrita seja também um grito de outras mulheres que vivem silenciadas. E que minha filha cresça sabendo que foi desejada, mesmo quando o mundo parecia ruir. Que ela saiba que nasceu do amor que surgiu da dor — mas que não se deixa definir por ela.





