O ponto de partida deste trabalho é a minha prática como psicóloga no Espaço ELOOS, Unidade de Acolhimento voltada para gestantes e recém-mães. Em um segundo momento, também como psicóloga, em um CAPS-AD III – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas.
O nascimento desse projeto se deu a partir da necessidade de pensar políticas públicas que pudessem estabelecer atenção integral à mulher que se encontrava em situação de rua, com oferta de ações de cuidado capazes de conferir alguma dignidade humana àquelas mulheres: atenção ao pré-natal, tratamento para o uso de álcool e outras drogas, benefícios sociais, assistência jurídica e demais direitos. E para além disso, constituir-se como um espaço onde elas pudessem se haver com o seu lugar de mulher e mãe na sociedade, entendendo que, por terem suas trajetórias marcadas pela desigualdade de direitos de gênero, inserção social precária e uso abusivo de drogas, tem esse lugar desqualificado pelo julgamento da sociedade e pelo Estado.
Buscamos refletir a concepção do lugar de mãe produzida no imaginário social, que por muitas vezes produzem efeitos nefastos na vida dessas mulheres, onde são vistas, como mãe irresponsável. Como consequência, muitas tem seus filhos retirados pela Justiça, que por entender essa ação como protetiva a criança, acaba por produzir violência, ao impedir essas mães de exercerem a maternidade.
A experiência no meu percurso nos indica uma repetição, tanto no trabalho no Espaço ELOOS como no CAPS-ad III, pude ouvir o sofrimento de mulheres que tem seus filhos retirados pela justiça por viverem nas ruas e /ou usarem drogas
O sistema judiciário é constituído de um maquinário robusto. De modo algum, essa instituição é desavisada de suas ações e de suas decisões judiciais embasadas nessas mesmas leis que o constituem.
Na história recente mundial e, mais particularmente na do Brasil, testemunhamos a ascensão da extrema direita, por meio de um governo fascista, o que trouxe à superfície os ideais mais perversos dessa cultura machista, homofóbica, racista, feminicida e marginalizadora. Existe uma legitimação desses métodos eugenistas em discursos, em legislações e nas instituições públicas e privadas.
A partir disso apontamos que o fechamento do Espaço ELOOS no final de 2017, com o discurso da prefeitura de que não havia verba para dar continuidade ao funcionamento do serviço é um ato que se inscreve numa política contrária aos direitos humanos, principalmente os da população pobre, e tem seu víeis ideológico claramente moralista: “não há verba” para apoiar quem?
O trabalho realizado nesses dois serviços despertou-me o desejo de refletir sobre a violência que essas mulheres, sem ao menos poder escolher se querem ou não exercer a maternidade, sem poder falar do seu desejo em ficarem com seus filhos.
Marcamos assim que, essas mulheres gestantes que sofrem com violência do Estado, retirando os seus filhos, a princípio, não devem de imediato serem nomeadas como mães pelos profissionais, pois isso é um trabalho subjetivo que cada uma delas fará, pois partimos da hipótese de que tornar-se mãe é efeito de uma escolha do sujeito e não de determinação estatal.
O presente trabalho aponta o ato de o Sistema Judiciário tirar o filho de sua; mãe, como sequestro institucionalizado pelo Estado. O ECA determina que os pais têm direito de serem ouvidos e a participar dos atos jurisdicionais (BRASIL, 1990a). Logo, determinar o acolhimento institucional sem a devida oitiva dos pais é não só uma violência como também um ato criminoso, ou seja, o sistema atua impossibilitando que essa mulher possa advir enquanto sujeito operador da sua experiência humana.
Tomamos a orientação psicanalítica no atendimento a essas mulheres. Elia (2004), em seu livro “O Conceito de Sujeito”, aponta que a clínica da psicanálise tem recursos capazes de criar condições para o sujeito através do uso da palavra, operado pela transferência com alguém em posição de escuta analítica. Assim, o sujeito poderá acessar algum saber sobre si, e dessa forma, articular com várias problemáticas de sua vida.
O que observamos ao longo dos atendimentos com essas mulheres, era que pela fala, criava-se condições para que algo do inconsciente delas pudessem emergir. Algo do saber dessa mulher sobre o seu lugar de mulher e mãe elucidava-se, e elas podiam se haver com esse lugar ideal de mãe e da construção de um lugar possível para o seu desejo enquanto mulher.
Encontramos aqui uma interface onde a práxis da psicanálise e a política pública se articulam em um plano social. A psicanálise vai pensar o sujeito em sua raiz articulando com o social, cuja a porta de entrada se chama família, portanto é importante dizer que ela não apenas considera a dimensão social nessa constituição do sujeito, mas pelo contrário, afirma a dimensão social como essencial à constituição desse sujeito do inconsciente.
Sendo assim, perguntamos, que mulher é essa? Qual a marca que ela carrega para que a sociedade e o Estado se achem no direito de dizer sobre ela?
Quando pensamos nas mulheres negras, essas vivenciam toda ordem de discriminação de raça e gênero. E ao falarmos de mulheres em situação de rua, são em sua maioria, negras. Destacamos que essas mulheres que não são escutadas e, por vezes, silenciadas, têm cor. Nomeamos isso de racismo. Esse que ronda a existência do sujeito negro desde o momento do seu nascimento.
Essas vivencias discriminatórias de raça e gênero, ao se interseccionarem, comprometem a sua inserção na sociedade como um sujeito de direito e desejo. A psicanalista Neusa Souza Santos, em seu livro “Torna-se Negro”, nos afirma que “o pensamento do sujeito negro, parasitado pelo racismo, termina por fazer do prazer um elemento secundário na vida, no corpo e da mente” (SOUZA, 1983, p. 77). Para a psicanálise o desejo não é algo inato. O desejo é movimento que sustenta a vida e que move o sujeito para a vida. Com Freud vimos que o desejo é capaz de colocar o aparelho psíquico em movimento. Entretanto, toda questão é cernir a relação do sujeito com seu desejo diante dessas situações opressoras, abusivas e violentas.
A longo do trabalho nos debruçamos também a pensar sobre o acesso à saúde para essa mulher negra, muitas relatam em seus atendimentos, sofrerem algum tipo de violência e discriminação por parte dos trabalhadores, seja por estarem sujas, não terem endereço fixo, ou por fazerem uso de drogas”. Dessa forma, muitas não retornam para o acompanhamento e acabam por não serem assistidas pela política de saúde. Situações como essas vão na contramão do princípio de universalização do Sistema Único de Saúde (SUS)1, que nos aponta a saúde como um direito de cidadania de todas as pessoas. Este trabalho tem o compromisso de reafirmar para o Estado, que cabe a Ele assegurar esses direitos, promover acessos, ações e serviços, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais e pessoais.
Não sem motivo, mulheres negras e/ou em situação de vulnerabilidade costumam reunir-se para se encorajarem e enfrentarem as adversidades e violências que atravessam suas vidas e seus corpos. O que observamos é que esses coletivos se organizam em variados formatos, pelo cuidado umas com os filhos das outras, por rodas de conversas, pela culinária, pela religião e pela cultura, como por exemplo, O ato da escrita as possibilitam ressignificarem suas dores decorrentes de violências experimentadas em suas trajetórias. É o que constatamos no coletivo de mulheres poetas, como: Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, ou no discurso da vereadora Marielle Franco, a cientista bióloga Maria Augusta e tantas outras mulheres que seguem lutando para terem o direito de ocuparem os espaços que desejarem.
E Esse trabalho aponto para a delicadeza de se pensar cada mulher e gestante como um sujeito singular inserido na cultura, com suas experiências e suas histórias; é preciso pensar junto com elas, e não por elas, sobre como é possível ser mulher e mãe para cada uma delas.
No ato decisório da juíza em separar Lia, que é uma mulher preta, pobre, já morou na rua e atualmente mora na favela, do seu filho, escancara as práticas racistas nas instituições jurídicas no estado do Rio de Janeiro.
Segundo a escritora Cida Bento, os processos de operacionalização do racismo no interior de instituições geram a exclusão, a sub-representação e o genocídio das pessoas pretas (BENTO, 2022). Lia, em muitos momentos, trouxe o desconforto por não ter se sentido ouvida, e chegou a perguntar para a analista por que sua palavra não tinha “crédito”. O que observamos aqui é um descaso com o que Lia tinha a dizer. Em muitos momentos, o estigma voltado à mulher que faz uso de droga a coloca nesse lugar, o lugar do não lugar. Marcamos nesse trabalho a urgência de discutir a questão do uso de drogas na atualidade, para a desconstrução do imaginário vinculado a marginalidade, e vitimização. O mesmo imaginário que permeiam e padroniza as atuações e decisões judiciais.
Evidenciamos que as decisões criminosas do Sistema Judiciário que vem apoiada em um falso discurso de proteção, revela-nos uma política segregacionista e violenta. Percebe-se, também, a imposição de um conceito de maternidade elitista e embranquecido.
Pensar a clínica articulada à política não é tarefa fácil. Entretanto, se não propusermos tal possibilidade, essa articulação ficará à mercê de posturas caridosas, que, por vezes, costumam confundir política pública e acesso universal aos serviços públicos com práticas voluntariosas e sem embasamento teórico-clínico. Por isso, ter uma um profissional implicado nas mediações com outros serviços públicos abre outras possibilidades de diálogos.
Reafirmamos a necessidade de sustentar uma prática clínica que vá na contramão de disciplinar os corpos dessas mulheres e de controlar diversas formas da sua subjetividade, mas que leve em consideração o mal-estar que se apresenta em cada sujeito de forma diferente. A temática droga precisa ser pensada e trabalhada dentro dos serviços de uma forma menos moralizante, no sentido de podermos produzir menos violências. Ressaltamos também que é importante produzir tensionamentos no sistema judiciário, a fim de que ele possa fazer valer a lei ao invés de proferir decisões que por vezes são cruéis, perversas e criminosas.
Notas:
1BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema Único De Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília: Ministério da Saúde, 2000.
Bibliografia:
BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito das Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; Conselho Nacional de Assistência Social, 2006.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990, Seção 1, p. 13.563.
CIDA, BENTO. “O Pacto da Branquitude” / Cida Bento – 1ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
FREUD, S. Além do Princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920- 1922). 1 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 18).
FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. 1 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVII).
O RACISMO E O NEGRO NO BRASIL: questões para a psicanálise /organização Noemi Mortiz Kon, Cristiane Curi Abud, Maria Lúcia da Silva – I. ed. – São Paulo: Perspectiva, 2017
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2 ed. Rio de Janeiros: Edições Graal, 1983.
Por Joyce Guilherme C. Cutrim – @psicanalista joyceguilherme





