Ser mãe sendo quem eu sou: maternidade atípica, corpo em risco, alma em travessia

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Nasci mãe num corpo que ainda doía pelas perguntas sem nome. Um corpo cansado, mas jovem. Uma alma em espanto, mas já em travessia.

Eu tinha dezoito anos e pensava ter um mundo inteiro nas mãos quando soube que havia uma vida crescendo dentro de mim. Ainda não sabia que meu corpo era tecido também por uma síndrome rara, de articulações frágeis, de um cansaço que não passava com o sono, de feridas que não se fechavam como as dos outros (na infância, um de meus apelidos era “Remendo”).

Ainda não sabia que minha mente percorria caminhos tortos aos olhos do mundo, mas retos demais para mim. Isso tudo ainda não tinha nomes. Só sentia. E entre tudo o que sentia, ali nasceu a certeza: eu estava apaixonada pelo meu bebê. E nem sabia que era menina.

A gestação veio como vêm as grandes águas: arrastando, afogando, renovando. Fui internada mais de uma vez, sentia dores que ninguém parecia entender. Dores fundas. Dores que hoje sei que eram avisos do meu corpo tentando me contar da sua condição, da sua luta. Ela nasceu antes da hora, de 34 semanas, depois de 30 horas de trabalho de parto e uma cesariana de emergência. Mas veio como se dissesse: eu não precisava de tempo, só de amor. E ela teve. Desde sempre. Desde antes.

Me lembro do dia em que saí da maternidade. Com ela nos braços. Bochechas rosadas. E um medo que me atravessava os ossos. Um medo novo, inédito, sem nome também. Engoli o choro para ajeitar a bolsa, sorrir para a enfermeira, recolher os papeis. Mas por dentro, um vendaval. Fomos até o berçário para buscar nossa bebê e entrei em pânico, queria devolvê-la pra barriga se pudesse.

Nesse instante, minha memória voltou até a primeira semana de janeiro. Eu voltava ao trabalho depois do recesso e me sentia diferente. Um sono fundo. Um enjoo persistente. E então, o exame. Positivo! A vida em forma de notícia. Liguei para o Alexandre, a voz tropeçando de emoção, e disse: a gente vai ter a nossa misturinha. E nesse instante, eu deixei de ser apenas filha. Fui mãe. De mim também.

Talvez seja clichê. Mas o que há de errado no clichê quando ele é feito de verdade? Verdade também tem cheiro de cotidiano, tem cara de filme antigo, tem gosto de arroz com feijão.

Naquele dia, não soube vestir minha filha. Encapotei como se no mundo inteiro fosse nevar e eu de vestido de alcinha. Nela, camadas e mais camadas de roupas, luvas, touca, cobertor e manta. No carro, percebi que seu rosto suava, e chorei. Chorei porque achei que não sabia protegê-la de mim mesma, de minha inexperiência. Mas logo depois sorri. Porque entendi: a gente aprende a ser mãe sendo. Errando. Tentando. Refazendo. E eu estava sendo.

Onze anos depois, o destino me estendeu, de novo, o sagrado ofício de gestar. Dessa vez, um menino. E de novo, meu corpo se rebelou. Tive que fazer cerclagem 12o. semana e repouso absoluto e diversas internações. Ainda não sabia que meu útero, minha pele, minhas cicatrizes, minha coluna carregavam o nome escondido de Ehlers-Danlos. Não sabia que minha fragilidade era também uma forma de mistério. Ele nasceu com 32 semanas. Pequenino. Leve. Um pingo de gente. Mas inteiro. Intenso. E meu.

E junto com ele, voltaram os medos. As dores. As ausências. As feridas que não fechavam. A cesariana abriu como da primeira vez. O corpo inflamou. Eu sangrava por dentro e por fora, tentando ser abrigo, sendo casca, sendo ninho.

Dessa vez, ele chorava mais. Mamava mais. Vomitava mais. Era como se tudo em volta gritasse. Tudo doía em nós dois. Até que veio o diagnóstico da intolerância à lactose, e parte do mistério se explicou. Mas não todo. Porque mãe também chora sem explicação. Mãe também se desespera quando ninguém vê. E eu chorava.

Não havia rede de apoio. O termo, inclusive, nem fazia parte do meu vocabulário. Eu só sabia que estava sozinha. E que ninguém parecia notar. Ninguém parecia saber que, mesmo exausta, eu era uma leoa. Mas uma leoa ferida. Sem toca. Sem silêncio. Com um amor que me atravessava, mas com um medo que me paralisava.

Fico pensando, até hoje, como ainda é difícil dizer isso sem ser julgada. A gente aprende que não se pode falar sobre o trauma do puerpério. Como se amor anulasse exaustão. Como se colo de mãe fosse automático. Como se bastasse o instinto. Mas não basta. Porque o puerpério não é um comercial de fralda. Ele é um deserto. Um vendaval. Um terremoto.

É amor, sim. Mas é também dor. É ternura, mas é também solidão. E mesmo assim, a gente ama. Ama até sangrar. Ama até a exaustão. E segue.

Com dois filhos nos braços e um coração em carne viva, eu segui. Sem saber que era uma mulher neurodivergente. Sem saber que minha forma de sentir, de pensar, de reagir, de me expressar — tudo isso um dia teria nome, teoria, estudo. Mas não naquela época.

Hoje, olhando pra trás, sei que fui uma boa mãe. Porque fui a mãe que eu podia ser. Com todas as minhas limitações, com todos os tropeços, com toda a bagagem que ninguém via. Eu fui a mãe que se esforçou. Que estudou. Que perguntou. Que caiu e levantou. Que chorou escondido e sorriu em público. Que amou, que ama.

E esse amor segue. Como rio. Como flecha. Como farol. Como vela em travessia oceânica.

Porque ser mãe sendo quem eu sou é também isso: fazer do meu corpo frágil uma jangada. Fazer da minha alma inquieta uma bússola. Fazer da minha história uma travessia.

E sigo. Porque sigo com eles. E por eles. E por mim.

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Alessandra Bacalow de Mello Moreira – @Sra.TEAtipica

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