O som da chuva não vinha de fora. Era dentro da casa que ela caía. Dentro das paredes. Dentro de Clara. Ela ouvia o gotejar mesmo sob o silêncio da madrugada — um ruído pastoso, constante, como se a casa chorasse por ela, ou por algo mais antigo.
Clara estava sentada na poltrona há horas, com os olhos cravados no berço. O bebê dormia. Ou fingia dormir. O pequeno corpo se movia de forma quase imperceptível sob o cobertor azul. Mas os olhos — quando se abriam — não eram de um bebê. Eram grandes demais. Antigos demais. Olhos que pareciam ter nascido sabendo.
Desde que voltou da maternidade, Clara não conseguia dormir. O quarto agora era outro. As paredes pareciam mais fechadas, o teto mais baixo. Ela costumava gostar do som da casa respirando — os estalos da madeira, os canos suspirando. Agora, cada som era uma ameaça. Cada sombra, um vulto. Cada canto, uma emboscada.
O marido, Lucas, saía cedo e voltava tarde. Trazia comida congelada, notícias vagas e, às vezes, nenhuma palavra. “O bebê precisa de você”, dizia, antes de desaparecer atrás do som do carro. O bebê. Aquela coisa que mamava dela e deixava os seios empedrados. Que chorava sem lágrimas. Que a encarava durante horas.
Clara parou de amamentar na segunda semana. Disse ao pediatra que tinha dores. Disse a si mesma que estava exausta. Mas, no fundo, havia outra verdade: ela não queria que ele se alimentasse dela. Não mais.
O rádio começou a ligar sozinho. Primeiro às três da manhã, depois às três e trinta e três. Sempre na mesma estação, mesmo volume. Vozes murmurando em outro idioma, algo entre ladainha e convocação. Clara desligava. E ele religava. Desligava. Religava. No espelho do corredor, começaram a surgir manchas. Círculos. Letras trêmulas.
A primeira palavra que leu foi “sacrifício”. Depois: “inocência”. Pensou ser vapor ou imaginação. Mas, na manhã seguinte, encontrou a palavra escrita também no vidro da janela. Do lado de fora.
Às quartas, uma vizinha passava para ver o bebê. Levava bolo, dava conselhos, perguntava pela mãe de Clara. A mãe morrera há um ano. Desde então, Clara dizia a si mesma que estava bem. Mas as fotos da mãe ainda estavam espalhadas pela casa — nas estantes, gavetas, atrás das portas. A casa não a deixava esquecê-la.
Às vezes, achava que a via refletida no micro-ondas. Ou na água da banheira. Uma boca que se mexia sem emitir som. Um aviso sem palavras. No décimo segundo dia, Clara ouviu a casa sussurrar. Não foram palavras. Eram sons vindos das paredes, do chão, do teto. Sons que ela compreendia sem entender. Começou a anotar — palavras rabiscadas no verso das fraldas, nos azulejos do banheiro, com batom, com leite, com sangue.
Ela deixava oferendas: um pedaço de unha, um chumaço de cabelo, a aliança que já não usava. Na madrugada seguinte, preparou o quarto do bebê como quem prepara um altar. Cobriu as frestas com pano vermelho. Acendeu velas brancas. Quebrou um ovo no centro do berço. O bebê não chorou. Apenas a olhou com olhos fixos e imóveis. Clara não viu inocência ali. Viu julgamento.
O pediatra ligou. Disse que o bebê precisava voltar para consulta. Clara não atendeu. O telefone tocou de novo, e de novo. Um dia inteiro. Até ela enterrá-lo no fundo do vaso sanitário. Clara começou a conversar com o espelho. Chamava-se por outro nome. Dizia que não era ela, mas a filha de sua mãe. Que tudo era um ciclo. Que o bebê fazia parte do castigo.
Ela sonhava com portas escondidas. Passagens atrás da estante. Um cômodo sob o berço, onde mãos enrugadas esticavam-se em súplica. Acordava suada, o leite escorrendo pelos seios, mesmo sem amamentar há semanas. Na terceira sexta-feira, acordou com a casa tremendo. As velas haviam se apagado sozinhas. A banheira encheu-se de água sem que ninguém abrisse a torneira. Clara interpretou tudo como um sinal. O sacrifício deveria acontecer naquela noite.
Chovia forte. Clara vestiu o bebê com a roupa de batizado. Cobriu-o com o cobertor azul. Cantava uma canção que não lembrava ter aprendido: “Afunde, afunde, sem dor, que a água limpa, que a mãe perdoa…” A casa estava escura. As janelas batiam como palmas impacientes. A banheira esperava, cheia, a água parada refletindo o teto trincado.
Clara entrou no banheiro com passos lentos. O bebê estava calado. Os olhos abertos. Nenhum som. Nenhuma lágrima. Ela ajoelhou-se e sussurrou uma última oração, mistura de fé, desespero e um resto de lucidez: “Que ele não me veja. Que ele não me odeie. Que ele não me siga.”
Quando se inclinou, o espelho do banheiro rachou com um estalo seco. Ela viu seu reflexo. Mas não era ela. Era sua mãe, com olhos úmidos, expressão resignada. A boca movia-se, mas não dizia nada. O bebê soltou um grito agudo. Um grito que não parecia humano. Clara recuou. O cobertor escorregou. O bebê caiu sobre o chão frio — e chorou. Chorou como um bebê.
De repente, tudo se calou. O rádio parou. A água cessou. O ar tornou-se leve por um segundo. Clara abraçou o próprio corpo e caiu sentada. Chorou. Riu. Depois ficou em silêncio por horas, com o olhar perdido na rachadura do espelho.
No dia seguinte, o serviço social veio. Levaram o bebê. Levaram os restos das velas, os papéis, os sinais. Disseram que ela precisava de ajuda. Ela não respondeu. Durante dias, Clara vagou pela casa como uma sombra. O leite secou. O sangue também. Mas a rachadura no espelho permaneceu.
Sentava-se sempre diante do berço vazio. Ouvia o choro, mesmo com a casa silenciosa. Ouvia os passos, mesmo estando sozinha. Ouvia sua mãe. Dizia a si mesma: “foi delírio”. Mas a casa dizia: “foi ritual”.
E no fundo, sabia que ambas diziam a verdade. Porque o berço estava vazio. E, ainda assim, era o lugar mais cheio da casa.
_
Autora: Gabriela Castro / @agabymrcastro





