Dez anos atrás iniciei minha missão mãe, dolorida e lentamente, com dois corações batendo aqui dentro, inaugurando a vida aos gritos (como se anunciam as revoluções). Com ele veio luto enorme, silencioso e pouco nomeado — o daquela versão de mim que se dissolveu no sal e no sangue daquela sala. Nunca aquela pessoa voltará a existir. Com o tempo, fui percebendo que há outros acontecimentos, outros lutos de alguns “eus” interiores que vão morrendo, nascendo, morrendo e nascendo nesse eterno rio que corre e nunca é o mesmo. Eles morrem deixando cicatrizes de nosso tempo e vivências. Sim, é um clichê. Mas os clichês, como as velhas canções de ninar, existem porque alguma verdade fundamental os sustenta.
Tive dois corações batendo em mim mais uma vez e, hoje com eles, não sob minha pele, mas ao meu lado — em corpos que dançam desengonçados e questionam o mundo com uma lógica que me desmonta —, pensei que havia aprendido a navegar. Engano. Vieram as neurodivergências como ventos de leste, soprando para longe o mapa da “vida idealizada”. Ah, essa vida… eles me acompanhariam em eventos, festas, bloquinhos de carnaval (quem sabe tocariam comigo em um deles?) e, a essa altura da leitura, vocês já perceberam que isso não acontece, não? Não se negocia com a realidade. E dói. É simples e sem culpa: existe dor de despedir-se não só da vida idealizada, mas da mãe que se imaginou capaz de equilibrar todos os mundos. A cada dia, tenho outras percepções e perspectivas desse mesmo fato; definitivamente, já doeu mais que hoje, mas é uma transição difícil.
Falo em ventos e marés porque eles me lembram do El Niño — esse fenômeno caprichoso que leva o nome de um menino santo, mas age como um levado climático. Você já se perguntou por que ele se chama assim? Para explicar, vou pedir ajuda ao personagem Yanko Flores da série The Morning Show:
(…) Tudo começa com algo tão pequeno e insignificante: uma anchova. Veja, a anchova prospera melhor em águas temperadas. Então, quando os ventos alísios equatoriais trouxeram água fria para o oeste, ela foi aquecendo lentamente sob o sol inclemente. E, quando chegou a Chimbote, no Peru — a capital mundial da anchova —, as águas aquecidas já estavam completamente inabitáveis para o peixe. Quer dizer, tudo sofreu, não só os peixes. (…) E como esse fenômeno coincidia com a celebração do nascimento de Cristo, chamaram-no de El Niño de Navidad.(…) Essa coisa que parece tão insignificante (…) um prenúncio de algo que desequilibra tudo. (…) Mas não há como impedir o vento de soprar. (…) Você segue em frente.
Há uma ironia cruel nisso: damos nomes doces às nossas tempestades interiores. A maternidade é meu El Niño particular. Começou com algo minúsculo — um teste positivo, um útero que se expandia — e virou o eixo do meu mundo. Não há como impedir esses ventos. Aprendi, depois de naufrágios, que navegar não é se render à correnteza, mas ajustar as velas. Há dias de bonança, em que as águas estão tão calmas que é possível ver o céu refletido nelas como um quadro. Há noites em que o mar cospe águas-vivas e a proa do barco parece frágil como palito. Mas sigo. Não por resignação, mas porque descobri, nas frestas desses lutos, uma verdade: as mesmas correntes que me arrastam também esculpem paisagens novas em mim.
E assim avanço, como um filete de água que insiste em furar pedras. Penetrando solos, serpenteando em espaços que nos disseram proibidos. Deixo marcas — estrias no corpo, rugas no tempo, a neve dos cabelos brancos, rachaduras nos mapas conquistando territórios. Ser mãe, para mim, tem sido isso: habitar o paradoxo de ser ao mesmo tempo a arquiteta e a obra inacabada, a navegadora e o território a se descobrir. Os ventos sopram. Eu velejo. E, quando a noite está particularmente escura, lembro que até as anchovas — frágeis, deslocadas — encontram novos lugares para viver.
* Yanko Flores é o personagem interpretado pelo ator Néstor Carbonell da série The Morning Show emitido pelo streaming Apple TV
Por Janaína Dutra Silvestre Mendes – @janadutr





