Delírios maternos

IMG 20170724 112120 Marcia Fernanda 683x1024

Achei curioso o fato de que minha primeira aparição pública pudesse ser em um texto sobre maternidade. Estava assistindo à série, The Handmaid’s Tale, que acaba de lançar seu último episódio. Dentre tantas questões memoráveis, há uma cena em que no último episódio a protagonista, June, recorda de um momento do passado: durante um passeio ao parque, enquanto comprava os bilhetes de entrada, perdeu a filha por alguns segundos. É um sentimento alucinante — nós sabemos como é. Logo ela a encontra, admirando o carrossel, e corre para abraçá-la.

A ironia é que a série, em suas seis temporadas, narra — de forma bastante resumida — a saga de June em uma teocracia fundamentalista e distópica, tentando libertar a si mesma e a filha da escravidão. Em quinze anos, June não consegue libertar a filha, apenas vive brevíssimos encontros subversivos. Um delírio. Assim como a maternidade — o que é, senão um delírio? É alucinante desde seus primórdios. Desde que me tornei mãe, o sentimento de culpa é constante, quase lancinante.

Há uma série de coisas que talvez eu não pudesse dizer, diriam vocês. Mas o que seria de mim se não dissesse? Não estou aqui em busca do triunfo pela palavra? Vivo com sentimentos conflitantes sobre a maternidade. Uma vez, uma amiga me disse: “É melhor aceitar, sabe? Não fico mais pensando em como seria, preciso me ater ao presente, senão eu piro.” Sempre me agarro a essa lembrança para voltar ao chão e tentar reerguer a cabeça. Preciso viver o agora, é tudo que tenho.

Não posso me perder no oásis do “e se”. Mas me perco. Às vezes, perco minutos seguidos pensando em como seria poder ter continuado os estudos sem grandes problema; como seria chegar em casa e tomar um banho no máximo silêncio que meus vizinhos permitissem; sair do banho, jantar e fazer o que quisesse — no meu tempo, no meu espaço, sem as urgências de dois filhos e um marido. Sem os choros, sem as carências, sem o desfralde e o xixi e o cocô nos lugares mais inusitados. Na verdade, já estou tão acostumada que o cantinho no quarto deles, entre o balaio de brinquedos e a estante de livros, já ganhou apelido de “lugarzinho preferido dele de fazer cocô”. Já não é mais inusitado, agora é comum.

E assim, num passe de mágica, volto à realidade e me vejo rindo igualzinho uma boba apaixonada, lembrando do meu filho mais novo, fazendo cocôzinho, de cócoras, quietinho no seu cantinho do quarto. Isso é a maternidade: esses sentimentos conflitantes.

Posso falar por mim, mas não ouso falar por todas. Os bons sentimentos imperam, e digo sem dúvidas que é o amor mais intenso que já senti e não existe nada parecido. É realmente incrível. As felicidades, o chulézinho daqueles pezinhos, o olhar do primeiro momento de amamentação, quando nos observam e conhecem tudo o mais ao mesmo tempo — é mágico, único. Mas nada é mais difícil do que ser mãe — nada que eu faça ou tenha feito na vida. A maternidade é isso, tudo ou nada: ou você está no céu, ou está no inferno. Um delírio.

Um delírio que exige nossa melhor sanidade. Sem ela, você não vai chegar muito longe. Descobrimos isso desde o momento em que vemos a barriga crescer, sentimos os seios doloridos, em carne viva, mas seguimos amamentando o filho que depende de nós. Que mama no seu peito exclusivamente pelos primeiros seis meses. Ou quando, por qualquer motivo, não conseguimos amamentar — um momento pelo qual talvez você estava ansiando, ou talvez a dor seja pela pressão que a sociedade coloca em cima de nós todas e tudo que não conseguimos realizar de acordo com a cartilha faz com que nos sintamos culpadas, fracassadas, menos mães.

Quando a culpa vem, é preciso manter os pés no chão. Manter sua sanidade, olhar para si com outros olhos, se abraçar, reconhecer as próprias conquistas, se perdoar.

Desde que me tornei mãe, algumas coisas me deixam indignadas. A primeira delas é óbvia. A que considero a mais óbvia: por que diabos as pessoas não falam o quão difícil é criar um ser humano? Mais especificamente, por que ninguém fala o suficiente sobre o quanto é difícil ser mãe?

Enquanto estamos grávidas, nós viramos uma fábrica, que funciona 24 horas por dia. Full time. Produzimos ossos, cérebro — esse cérebro que os médicos tanto estudam e estudam. Fomos nós, mães, que o fizemos. Por que isso não está nos livros? Onde está o nosso protagonismo? A nossa dor?

Lembro-me de alguém ter dito — agora não me lembro quem — “se os homens menstruassem, existiria licença-menstruação”. E concluí: “Imagina se os homens engravidassem, a licença seria durante toda a gestação, no mínimo.” E isso seria o justo. Mas, claro, comprometeria demais o lucro, e também não precisam se preocupar com isso.

Se fossem eles, haveria muito mais diálogo sobre os problemas, desafios, as questões enfrentadas pelos homens durante a gravidez, durante o puerpério e tudo o mais: questões relacionadas ao corpo, autoestima, as questões psicológicas e sociais. Mas, como somos nós, dizem apenas: “São só mulheres. Elas conseguem, são guerreiras, está no DNA delas cuidar, é isso que as faz felizes, não precisamos dar crédito à algo que fazem com tanta destreza e naturalidade”.

Então, o que queremos? — um homem pergunta. Eu quero paz, espaço, tempo de qualidade, brincar com meus filhos. Mas, para isso, preciso de alguém que divida comigo todos os pesos. Porque sozinha, com a burocracia, não me sobra tempo para sorrir — senão para me lamuriar e desejar, ansiar e sonhar com uma vida melhor que fosse totalmente diferente dessa.

Porque com toda essa carga, já não consigo ser espontânea, senão preocupada. E, por fim, desejando se outra pessoa qualquer — que não eu, que não mãe.

Por Marcia Fernanda – @marciafernandassilva

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