A dor e o amor por trás de lutas silenciosas de famílias que vivem o autismo

Dra Anita Autismo

Recentemente, um dos temas que mais repercutiu nas redes sociais foi o vídeo de uma mãe de três crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), em um desabafo sobre os prejuízos causados pela “romantização” do autismo. Nos últimos anos, depoimentos, campanhas e publicações sobre o tema têm se multiplicado nas plataformas digitais, em um movimento que trouxe um avanço significativo e necessário em visibilidade. Falar sobre autismo hoje, é trazer à luz a realidade de milhões de pessoas, além de ajudar a reduzir o preconceito e a ampliar o diálogo sobre inclusão.

Infelizmente, junto com esse progresso, formou-se um cenário de desinformação em que o Brasil ocupa o topo do ranking mundial de fake news relacionadas ao autismo, especialmente em comunidades digitais da América Latina e do Caribe. Um levantamento inédito da FGV, em parceria com a Associação Autistas do Brasil, aponta um aumento de 15.000% nas notícias falsas sobre o tema entre 2019 e 2024 — um dado alarmante, com impactos profundos e consequências graves.

A romantização também machuca

E da mesma forma que a desinformação cresce, a romantização do autismo também se espalha com força, distorcendo percepções e provocando sofrimento. Se as fake news enganam — e podem até matar —, a idealização do autismo adoece de forma silenciosa. A internet está repleta de publicações que retratam crianças autistas como “anjos especiais” ou “gênios incompreendidos”. 

São narrativas que pretendem inspirar, mas, na prática, constroem uma imagem irreal e distante da vivência da maioria das famílias — especialmente em um país desigual como o Brasil. No entanto, cabe entendermos o que é romantização e o que é realidade daquele que relata sua história! São muitas histórias, muitas dores e muitos amores. São caminhos que se cruzam e que poderiam trabalhar em sinergia, mas que geralmente há um afastamento, seja por incompreensão, por desentendimento, por mágoa ou por dor… Não importa o motivo, tanto a romantização quanto a reclamação das dificuldades criam abismos entre pessoas que querem dizer a mesma coisa: todas querem expressar o que sentem! E, para muitos, tanto a dor quanto o amor exacerbados podem nos impedir de sentir o que o outro sente.

Entre a dor e o amor: o que é romantização e o que é realidade?

Ao apresentar o autismo como sinônimo de dons ou talentos extraordinários, essa visão apaga a complexidade da condição e invisibiliza quem necessita de maior suporte. Mães que convivem com crises sensoriais, noites sem sono e dificuldades severas de comunicação acabam isoladas. Por outro lado, quem desmerece a forma que o outro se comunicou em relação ao que vive e sente, também traz em si sua dor e o apagamento da história de quem vive o autismo de outra forma. Não é raro vermos pessoas pobres nas redes sociais mostrando o autismo do filho de forma mais leve, com ênfase nas conquistas e nos sorrisos, sem contar as noites em claro e os choros escondidos. 

A rede social não deve ser um local para se medir sofrimento ou amor e, por ser um local de livre expressão e pouco tempo para expressar o que queremos, haver desentendimentos é inevitável! Mas devemos manter o respeito pelo outro e, acima de tudo, por nós mesmos. A forma que cada um irá expressar como sente o autismo, ou qualquer outra condição, merece ser vista de várias perspectivas.  

Inúmeros estudos trazem dados alarmantes de mães com rotinas estressantes, que vivem como principais cuidadoras de pessoas com deficiência, apresentam maiores níveis de cortisol e têm maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares e outros transtornos neuropsiquiátricos, como ansiedade, depressão, burnout, ideação suicida, estresse pós-traumático entre outras. 

O peso de ser forte todos os dias

Por trás da imagem de força, há mulheres adoecidas, exaustas e invisíveis — mulheres que raramente são convidadas para festinhas de aniversário, para festas da escola, para eventos em família e que, em muitos casos, são abandonadas pelos pais de seus filhos e pelos amigos. Muitas, não têm mais tempo de arrumar um namorado, de fazer as unhas, de descansar à noite… São questões que podem ser fúteis para uns, mas vitais para outras! É uma batalha silenciosa que se desenvolve fora das redes, onde ninguém está olhando. A sobrecarga é física e mental.  

A sociedade costuma exaltar essas mulheres como “mães guerreiras”, o que pode ter a intenção de um elogio, à primeira vista. Porém, a figura da heroína acaba por apagar a história dessa mãe e contribui para justificar a ausência de políticas públicas e a falta de redes de apoio. Afinal, uma “guerreira” consegue suportar tudo! Ao rotular uma mãe como guerreira, a sociedade se esquece que muitas dessas mães abrem mão da carreira, da vida social e até da própria saúde. Dormem pouco, vivem em estado de alerta e enfrentam o preconceito diário. No entanto, sentem que precisam parecer fortes o tempo todo — sorrir nas redes, agradecer por tudo, mostrar gratidão. Ser vulnerável virou um luxo que poucas pessoas podem se permitir.

Falar sobre autismo exige responsabilidade. A comunicação sensacionalista, seja para demonização ou romantização, produzem danos reais — não apenas à imagem do autismo, mas à saúde das famílias envolvidas. O combate à desinformação precisa ser coletivo, envolvendo imprensa, profissionais de saúde, educadores e influenciadores. E o mais importante é nos juntarmos para combater a desinformação, que leva famílias a colocarem a vida de seus filhos em risco. O alvo é outro! 

O autismo não escolhe classe social. No entanto, ao se considerar a realidade socioeconômica brasileira — segundo levantamento da Tendências Consultoria, em 2024, aproximadamente 49,9% da população do país está nas classes D e E —, trata-se de um grupo que, notadamente, enfrenta dificuldades de acesso a direitos básicos.

Cuidar de quem cuida

É urgente ampliar políticas de apoio às mães cuidadoras: acesso gratuito a acompanhamento psicológico, grupos de escuta, flexibilização de jornada de trabalho e suporte financeiro. Mais do que reconhecimento, elas precisam de estrutura. O acolhimento não pode depender da boa vontade individual, tem que ser por parte de políticas públicas.

O autismo não é tragédia. Também não é poesia. É parte da diversidade humana — complexa, desafiadora e profundamente real. Por trás de cada conquista, há esforço, renúncia e noites insones. E, sobretudo, há mães que amam, sofrem e resistem, muitas vezes em silêncio.

Os posts da internet podem render curtidas, mas só a verdade pode construir um país mais inclusivo. E é essa verdade — sem fake news — que pode, de fato, transformar o olhar da sociedade. Porque o que adoece não é o autismo, e sim a forma como o mundo insiste em fingir que o entende.

Dra. Anita Brito, diretora técnica do PRÓXIMO DEGRAU e neurocientista especialista em TEA com formação pela Universidade de São Paulo (USP) e instituições internacionais como Harvard e Stanford. Membro da IACAPAP.

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