Dizem que quando nasce um bebê, nasce uma mãe. A frase, tão repetida quanto romantizada, por vezes embala corações ansiosos e acalma gestantes esperançosas — como se um milagre emocional fosse automaticamente concedido junto ao corte do cordão umbilical. Mas o nascimento de uma mãe não é fisiológico. É simbólico, subjetivo, processual. E, muitas vezes, solitário.
O parto é, sim, um evento do corpo. Mas a travessia que transforma uma mulher em mãe acontece em outra dimensão — onde não há anestesia, protocolo ou curva de dilatação. Nem sempre o reconhecimento do recém-nascido é imediato. Às vezes, ele vem em fragmentos, como quando se reconhece o próprio rosto em uma fotografia antiga: com estranhamento. O amor, que esperam ser instintivo, pode ser semente. E sementes precisam de tempo.
Nos dias que seguem, o mundo se desorganiza. O corpo arde, o relógio se dobra e a privação de sono transforma o tempo em névoa. Organizar os sentimentos é uma tarefa bem mais complexa do que alinhar o enxoval, os tamanhos das fraldas ou das roupinhas. As pessoas esperam que você aja com segurança, sinta um amor incondicional, anule seu cansaço e suas aspirações.
Ninguém fala sobre o cansaço que é amamentar. Sobre a sensação de estar inteira disponível, o dia inteiro. Sobre o peito que dói, que racha, que incha. Sobre o choro do bebê que não cessa, mesmo com o peito oferecido — e sobre o seu, que você engole com chá de erva-doce.
Não nos preparam para o que acontece quando o leite não vem. Ou não vem o suficiente. Quando amamentar vira uma tortura. Quando você precisa — por saúde, por sanidade, por escolha — oferecer fórmula. Você faz isso com as mãos tremendo, olhando para os lados, como quem comete um crime. E ainda assim vai ouvir: “Você tentou mesmo?” ou “Leite fraco não existe”. E é nesse ponto que a culpa se instala feito mofo em parede úmida. Porque parece que falhar com o peito é falhar como mãe. Mas o amor não está apenas no leite — está no olhar, no colo, na presença insistente mesmo na exaustão.
Amamentar, quando possível, é lindo. Mas não é a única forma de nutrir. E quem diz o contrário não conhece a inteireza de uma mãe que, mesmo ferida, segue oferecendo o que tem: seu melhor possível.
Mas você resiste e um dia — talvez no cheiro do pescocinho suado ou no olhar perdido entre mamadas — percebe: você não nasceu mãe. Está se tornando. E essa é uma revolução que ninguém vê, mas que move o mundo. Sim, é normal olhar o bebê e não reconhecer a si mesma como mãe. É normal chorar em silêncio enquanto ele dorme. É normal desejar voltar a ser quem era — mesmo sabendo que isso não é mais possível. E, ainda assim, será julgada. Porque esperam de você um amor incondicional, imediato, silencioso. Esperam que você cancele suas dores, anule seus desejos, dissolva sua identidade.
Puerpério é um lugar onde a solidão faz morada. Mesmo quando há gente por perto, o sentimento de estar só se infiltra pelos cantos da casa. O parceiro — quando há — também tenta encontrar seu lugar no novo mundo. Está cansado e às vezes confuso, inseguro, tentando ajudar como pode. Mas não sente o corpo latejar. Não sangra. Não é chamado o tempo todo com a mesma urgência.
O puerpério também é um luto. E não só pela mulher que você foi antes do parto — é um luto por tudo o que foi prometido e não se cumpriu. Pela romantização da maternidade, pelo silêncio sobre a dor, pela ausência de braços quando os seus se cansam. Pela falta de políticas públicas que garantam que a maternidade seja possível de ser vivida com dignidade.
A maternidade é política. Mas não do jeito bonito dos comerciais de fralda ou dos slogans das campanhas de Dia das Mães. É política porque escancara a desigualdade de gênero, a divisão injusta do trabalho doméstico, a precarização das redes de cuidado. É política porque evidencia quem tem tempo para ser mãe — e quem precisa voltar à luta com os pontos ainda doendo e os olhos fundos de sono acumulado.
A rede de apoio existe, e é bem-vinda. Mas não alcança a solidão da alma. Não preenche o vazio existencial de quem teve sua identidade atravessada por um nascimento que não foi apenas de um filho, mas de uma nova versão de si — ainda sem nome, sem contorno, sem manual. A mãe que você foi buscar como referência talvez diga: “na minha época era pior”. E foi mesmo: menos direitos, menos recursos, menos voz. A dor materna atravessa gerações, ainda que mude de roupa. Mas isso não torna a nossa dor menor. Porque ela também pesa, também machuca. E é nesse vão entre o passado e o presente que surgem mulheres-pouso. Aquelas que não invalidam o que sentimos, que não apagam nossa exaustão com frases prontas. São mães que estendem a mão, que reconhecem em nossos olhos o que já viveram, e dizem com verdade: “Eu também me senti assim. Você não está sozinha.” São elas que sustentam a gente quando o chão parece ceder — com um chá quente, um áudio na madrugada, ou só ficando ali, do lado de cá da dor.
É nesse silêncio cheio de barulho — o barulho da máquina de lavar, da chaleira, do bebê chorando, do celular vibrando com tentativas de afeto, ainda que não saiba como responder ****— que você vai se refazendo. Um pedaço por dia. Uma escolha por vez. Porque ser mãe, no fim, é reaprender a existir no mundo com uma nova cartografia de si.
Maternar também é isso: costurar palavras com o fio da verdade sentida. Não é denúncia disfarçada, nem poesia vazia. É memória viva, marca de quem passou e decidiu deixar vestígio. Que esse texto sirva como um desses rastros. Que outras mulheres leiam e pensem: “eu também”. Porque no mundo que tanto silencia a maternidade real, escrever é também parir voz.
Por Daiane Köhler – @daikohler





