A mãe monstra

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Cada manhã começa com uma rotina que se repete, como ecos de gestos: esquentar a dieta, revisar a sonda, os curativos, preparar os medicamentos, mudar os membros de posição, trocar a fralda, os paninhos de boca. Essa é parte da rotina do meu filho, marcada por uma paralisia cerebral severa. Uma rotina que também é minha. Que se repete todos os dias, há vinte e quatro anos.

Meu filho habita um corpo que não responde por si nas ações mais básicas. Mas está aí. Respira, existe, resiste. Sua vida depende de um cuidado constante. Para permanecer neste mundo, precisa de outro corpo, do olhar atento de outro, de tempo e disponibilidade de outro. Cuidar dele implica uma série de ações que exigem tanto precisão mecânica como uma entrega afetiva contínua. Não se trata só de uma resposta às necessidades do corpo, mas de uma implicação emocional e psicológica que transcende a rotina. De uma exaustão vampiresca.

A maternidade que vivo está longe de encarnar o sacrifício romântico ou as doces imagens que inundam o Dia das Mães. Pelo contrário, trata-se de uma maternidade que transborda as expectativas de amor incondicional e entrega absoluta. O que está envolvido é um trabalho de cuidado que, longe de ser secundário, constitui uma prática subjetiva essencial para a vida em comunidade. A idealização do amor materno, nesse contexto, é um mito que distorce as complexidades reais de cuidado.

O trabalho contínuo de quem cuida é sistematicamente invisibilizado, porque não gera rentabilidade na lógica capitalista e porque o cuidado é assumido como algo natural, quase instintivo, que não requer formação, reconhecimento nem compensação. Contudo, cuidar é uma tarefa exigente, atravessada por vínculos afetivos profundos, mas também por decisões difíceis, cansaço e solidão.

Este tipo de cuidado, que atravessa os aspectos mais íntimos de nossa vida cotidiana, vai além das tarefas físicas que um corpo realiza dia após dia. Às vezes, o cuidado, em vez de ser uma proteção, se converte em uma forma de silenciamento. Passamos por isso recentemente, durante uma consulta médica.

A doutora examinou meu filho, me olhou e falou num tom otimista: “Ele está muito bem para o quadro dele!”, como se essa frase pudesse apagar as condições precárias que vive. “Ele não tem pneumonia de repetição?”, segue ela. “Não, é forte como um leão”, respondo e sigo falando da sua salivação excessiva. Não se trata de uma simples manifestação fisiológica, é a forma que ele encontrou de manifestar desconforto. Ele espuma. Sua cama se converte num mar de baba. Essa é a sua maneira de dizer algo com seu corpo limitado, uma expressão insistente que roga ser ouvida.

A resposta da doutora foi rápida e técnica: aplicar botox nas glândulas salivares ou utilizar um colírio que seca a saliva. O que se apresentou como solução, parecia ao meu ver, uma tentativa de silenciar uma linguagem incômoda. Uma forma de corrigir um corpo para torná-lo suportável aos demais, e não de aliviar o seu desconforto de fato. Aqui, o que me importa não são os infinitos paninhos empapados de baba para lavar, mas o que significa isso. Meu filho não tem pneumonia recorrente porque não lhe resta saliva na boca para aspirar. Isso é o que eu devia ter respondido para à doutora, mas me engoliu a voz o espanto.

Existe um sentido de cuidado ético que leve em conta a qualidade e dignidade da vida humana? O que entendemos realmente por qualidade de vida? O que nomeamos sofrimento? Como dar voz a quem foi socialmente considerado incapaz de falar por si mesmo?

Em cada decisão sobre o corpo do meu filho, especialmente as que envolvem cirurgias e intervenções invasivas, me encontro diante do paradoxo de ter que decidir por um corpo que não é o meu. Um corpo que não fala, que não se move, que não escolhe. E, ainda assim, um corpo cheio de presença, habitado por uma subjetividade que tantas vezes permanece invisível.

Nesse encontro entre o físico e o emocional, as decisões adquirem um peso denso, carregado de incertezas e responsabilidade. Não se trata somente do que deve ser feito, mas também de como acompanhar, como sustentar sua existência com dignidade. De como cuidar daquilo que não se vê, mas também o constitui.

Cuidar de um filho com uma deficiência severa é habitar uma fronteira constante entre o amor e a exigência, entre a ternura e a fadiga. Suas necessidades são diárias, concretas e profundamente humanas. Não se trata apenas das demandas físicas, mas de necessidades a interpretar e acolher com sensibilidade e responsabilidade ética. Frente a uma história que reduziu os corpos com deficiência à monstruosidade, à passividade ou ao milagre, cuidar de meu filho se converte num ato político, uma forma de resistência encarnada. Mas também me atravessa a tensão silenciosa de viver sob representações sociais que nos encaixotam, as mães como eu, nas categorias de sacrifício, santidade, força e felicidade permanente.

Como se o cuidado fosse sempre virtuoso e natural. Abandonar a imagem de mãe “virgem santíssima” também é uma urgência de desconstrução de dimensão cultural, política e estrutural. Pelo direito a nos sentirmos tristes e esgotadas. Pelo direito a ser mãe desviante, trágica e rebelde. Mãe monstruosa. A mãe que me cabe.

Como mãe e cuidadora, me cabe ser intérprete dos silêncios de meu filho, mediadora de sua dignidade, para que se faça presente sua existência, embora fora das normas. Reconhecer a sua subjetividade, invisível para muitos, mas tão real como qualquer outra, implica questionar quem merece ser ouvido e como. O verdadeiramente monstruoso não é o corpo desviante do meu filho, mas a normalização de uma vida sem espaço para outras expectativas e possibilidades de cuidado que levem em conta sua maneira sutil de existir e se expressar.

Não encontrar um lugar onde se encaixar, não encontrar espelhos nos moldes pré-estabelecidos. Isso sim é assustador. Além disso, não me agrada nada a ideia de um corpo controlar outro. As obrigações, quando carecem de ética, se convertem em tirania.

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Anieli Cires dos Santos / @ani.cires

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