Coluna – Da pressão do vestibular ao peso das palavras

Cozinha Das Maes Marcia Valle 1024x768

O vestibular da minha filha está se aproximando. No meio de tantas cobranças relacionadas a estudos vindo da escola, de mim e dela mesma, entendi ser importante planejar uma pequena pausa para espairecer. Um momento para recarregar as energias e pensar em outros assuntos. Afinal, está chegando o momento do sprint final. As semanas e meses com foco na realização das provas que decidirão os próximos anos dela.

Planejei escrever minha coluna sobre esse assunto: os meses que antecedem o vestibular, o planejamento dos estudos e a necessidade de intervalos. Viemos para um hotel fazenda em busca desse descanso para minha adolescente, sobre o qual intencionava escrever. Pensei numa crônica leve, mencionando um ou outro animal do lugar, o contato com a natureza e o resgate de nossas raízes. Comecei apurando os sentidos para desestressar. Prestei atenção no cheiro de chuva, no brilho das estrelas sem tanta iluminação durante a noite, no perfume das flores… Mas perdi o foco ao me deparar com a placa “cozinha das mães”, num ambiente disponível para responsáveis prepararem a alimentação de crianças pequenas.

Inicialmente, meu texto ressaltaria a importância da saúde mental para os vestibulandos. Manter o equilíbrio sob pressão é tão ou mais relevante do que o conhecimento sobre o conteúdo das matérias. Afinal, o nervosismo na hora da prova pode impactar fortemente a nota. Construir bases sólidas para a preparação psicológica de um jovem demanda tempo, não acontece de uma hora para a outra. Pena que minhas ideias sobre esse tema foram interrompidas pelo machismo estruturante, que dita os locais e papéis femininos. Algo tão enraizado na sociedade que nem costuma levantar questionamentos quando coloca as mulheres “no seu devido lugar”. Isto é, na cozinha, na maioria das vezes. Nesse caso, na “cozinha das mães”.

Minha pauta também abordaria o foco necessário para fazer as longas provas. Algumas parecem testes de resistência, demandando dois dias seguidos. Se esse desafio já era enorme para as gerações anteriores, me parece ser ainda maior para a geração acostumada a vídeos curtos do tiktok e tweets com limites máximos de caracteres. Entretanto, minhas ideias foram atropeladas pelo sexismo, que não dá trégua nem nos momentos de folga.

É bem provável que muitos considerem minha reação exagerada. Principalmente, homens. Qual o problema da sinalização do ambiente como “cozinha das mães”? Dirão que foi somente uma escolha infeliz de palavras. Como se fosse uma casualidade que as escolhas infelizes de palavras sempre reforçassem a opressão de grupos minorizados e oprimidos. Há grandes chances de rotularem minha manifestação como mimimi. Afinal, essa é a forma de ridicularizar e minimizar a dor do outro, tornando-a invisível. Não espero nada diferente. O fato é que só me calarei no dia em que entrar num ambiente semelhante e encontrar uma sinalização indicando que é uma cozinha para homens prepararem mamadeiras e alimentação para crianças pequenas.

O texto que eu queria escrever era sobre vestibular. O texto que saiu foi sobre a cozinha das mães.

Autor

  • Marcia do Valle

    Márcia do Valle é mãe da Julia e da Clara, madrasta da Maria, feminista e carioca. Além de engenheira e mestra em administração de empresas, também  é autora dos livros "180 Graus" (Editora Marco Zero) e "Onde guardo as bobagens que eu contava só para você?" (Editora Adelante). Atualmente divulga seus textos no instagram @marciadovalleescritora.

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