Trabalho de cuidado: os cotidianos invisíveis de mulheres negras 

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Acordei perto do meio-dia. Sensação de inchaço no corpo, sinal da menstruação que  deve se achegar nos próximos dias, afinal, mulheres sangram. Abri os olhos devagar e me  espreguicei na cama, estava sozinha. Do meu lado vejo um Mickey de pelúcia sorridente que  dormiu conosco na noite anterior. O cenário é a cama dividida de maneira afetuosa com o  companheiro e com o pequeno menino-rei, de três anos. 

Acordei e lembrei: eles já tinham saído de casa mais cedo, pertinho das 6h30. Inclusive  fui eu que coloquei a roupa no bebê – sim, ele ainda é o meu bebê – para a escola. Arrumei a  mochila, tirei a fralda noturna, lavei o rostinho. Ainda sonolento ele me deu um beijinho, e lá  se foi para mais um dia de aula. O pai, responsável por essa parte rotina, foi junto e depois iria  trabalhar naquele emprego que faz dele um homem feliz e realizado. E eu? Bom, eu voltei a  dormir e acordei assim, pertinho do meio-dia. 

Gênero é construção sócio-histórica, diz Oyěwùmí (2004). Criado pela dita  modernidade ocidental. Esse conceito que baliza a minha vida desde o momento em que abro  os olhos e executo as tarefas que são atribuídas a mim. Com o café fumegante na cozinha, engoli  também a culpa, igualmente quente. “Caralho, dormi demais, de novo!”. Na mente, repassei os  compromissos: uma tese de doutorado que nunca termina. Afinal, se dedicar uma hora por dia  não é o suficiente para quem escolheu a trajetória acadêmica. Esse saber que sequer é  legitimado, essa escrita que fala muito de mim e de tantas, mas que não é visto como ciência.  Uma tese que me orgulha, apesar de os espaços de conhecimento considerarem que aquilo que  faço não passa de identitarismo sem valor, lixo. E o lixo fala, viu? Já diria Lélia (1984). 

Tomo café e penso nas novas tarefas acumuladas no trabalho e que preciso dar conta de  aprender, para fazer bonito – até porque uma mulher negra ocupando espaço em uma grande  empresa não pode errar. Lembrei ainda daquele projeto freelancer que estou desenvolvendo,  pois a família possui gastos esse mês e só o salário não está dando conta. E por falar em dar  conta, lembrei também do congresso importantíssimo da área que quero participar, mas que não  tive tempo de submeter inscrição. Mas onde já se viu? Já ocupei tantos espaços, não é mesmo?  Por que mais um Congresso? Não seria a hora de parar? 

Não comi pão nem fruta no café-almoço. Tive que priorizar arrumar a casa, deixar o  pijama do guri ajeitadinho em cima da cama. Óbvio, para o pai ter o mínimo de trabalho possível  quando chegar em casa mais tarde. Imagina dar o banho e ainda ter que procurar a roupa para  vestir na criança? Muito trabalho! O pai sozinho não consegue. Diz a sociedade que é  importante que eu entenda as limitações deste companheiro, afinal, ele é muito bom para mim. 

Também priorizei, ao invés de almoçar, tomar banho e me arrumar para o trabalho. Até  porque eu é que não quero ser a negra-suja-fedoremta-nojenta do trampo. Sempre arrumada,  cheirosa e bem-vestida. “Diva”, eles me dizem todos os dias. Mas divar me custa muito, me  custa o tempo do almoço. 

De novo comi um pão de queijo duvidoso no transporte público. “Gastei grana com  lanche na rua de novo, já estou no cheque especial outra vez. Mas deixa, foi só hoje, amanhã  me organizo e faço uma marmita colorida com legumes”. Mas o amanhã nunca chega… Tão  distante, né. Assim como o “amanhã eu me dedico melhor aos exercícios físicos”. Quer saber?  O problema está no futuro. 

Entre um assédio e outro por aí, um olhar racista e outro, chego no trabalho. Diva, rainha,  bonita, lacradora. Exerço a função com maestria. Elogios? Só esses aí mesmo, vindos de  mulheres. Ligados à beleza e à estética. Olhares masculinos no ambiente de trabalho? Com  frequência. Toda a beleza que preciso mostrar se volta contra a minha carne. Sim, aquela mesma  carne que é a mais barata do mercado, Elza (2002) nos disse. 

Em meio a conversas surge o papo sobre cansaço. Pessoas esgotadas que me sinalizam:  “Nossa, mas tu também fazes coisa demais, precisa diminuir o ritmo”. Eu me vejo culpada  novamente. Realmente, eu devo estar errando em algum ponto. 

Fecho os olhos por uma fração de segundos e relembro tudo o que faço: um doutorado,  cuido de uma criança, escrevo para revistas acadêmicas, sou editora em um jornal, sou  companheira, sou amiga que escuta dores, amiga que empresta dinheiro, irmã que empresta  dinheiro, sou vaidosa, sou uma mulher cheia de sonhos, de tesão pela vida. Sou tanta coisa.  Acumular não é uma escolha, para mulheres como eu, se sobrecarregar é destino. É estratégia  de sobreviver.  

Hoje eu vou chegar em casa perto da 1 hora, madrugada. A casa dorme, silenciosa. Meu  bebê dormirá também. Não vamos brincar, não vou conseguir perguntar como foi o dia dele na  escola. O companheiro vai procurar pelo meu corpo, ávido de desejo, e eu, mais uma vez, vou  negar. Vou ouvir dele que estou fria e distante, que não sou mais a mesma. Não sou. E eu lá sei  quem eu sou? 

Eu sou a diva, a lacradora, a rainha. É o que me disseram hoje, é o que me dirão amanhã.

Por Lucilene Athaide – @lucilene_athaide

Referências 

GONZALEZ, L. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais  Hoje, ANPOCS, p. 223-244, 1984. 

OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos  conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Tradução para uso didático  de: OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of  Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African Gender Scholarship:  Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series. Volume 1, Dakar,  CODESRIA, 2004, p. 1-8 por Juliana Araújo Lopes. SOARES, Elza, 2002. A carne. Composição: Jorge Mario Da Silva / Pedro Aznar / Marcelo  Fontes Do N. V. De Santana / Ulisses Cappelletti Tassano. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=yktrUMoc1Xw.

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