O celular toca, são 5h.
Café preto, um bebê chorando, troca fralda, dá de mamar, bolacha para os dois. Passa no banheiro. Os outros começam a despertar quando ela está de saída.
Uma porta, um portão, uma mochila, uma bolsa.
Caminhada, despedida, mais choro. Ônibus, trem, metrô. Sempre em pé.
“Patrão, patroa, tenho aqui o fone de ouvido mais vendido.”
“Imploro qualquer ajuda, meus filhos estão passando fome.”
Ela oferece dois reais amassados, encontrados no fundo da bolsa.
“Água fresquinha, melhor vender barato do que perder pros guarda.”
O homem sentado em frente a ela lê um jornal com a manchete “O parque municipal agora abre das 6h às 22h”.
Desce do vagão levada pela multidão de todos os dias, agarrada à bolsa. O relógio marca 7h47min e ela aperta o passo. Bate o ponto dois minutos antes do horário, passa correndo no banheiro e assume seu posto, ao lado da arara de roupas em promoção. Oito pessoas entram apenas para “dar uma olhadinha”, ela faz uma aposta mental sobre quantas serão hoje.
Duas das outras atendentes cochicham sobre o cliente que acabou de sair e levam uma bronca da supervisora.
Mais café.
Às 11h as costas já latejam, mas se distrai com a primeira venda do dia. A hora do almoço é a mais lucrativa.
O rapaz que trabalha na bomboniere ao lado entra na loja e puxa papo, fazendo-a perder a vez na fila dos atendimentos. Mas dá um chocolate para ela.
Às 14h esquenta a marmita e come no quartinho do fundo: arroz, feijão e salsicha. Outra funcionária a convida a irem para a praia no domingo, o que ela dispensa e agradece com uma risadinha ante o absurdo. Espia o celular e respira aliviada porque não tem nenhuma mensagem da creche. Assiste a um vídeo do filho cuspindo no colo do avô na noite anterior. Uma graça.
À tarde, ela reveza com as outras meninas o banquinho que fica ao lado do caixa.
No final do dia consegue mais duas vendas, na sequência. Sai às pressas e quase esquece o chocolate.
Metrô, trem, ônibus. Vai espremida entre três pessoas e fica na ponta dos pés para alcançar um apoio e se segurar.
Sente uma cotovelada, porém não se mexe.
Recorda do tempo em que recusava a hora extra para ir para a aula. Esse luxo não existe mais. Agora ela a recusa para chegar a tempo de pegar o filho.
“Promoção de kit de maquiagem, dez reais. Moça bonita não paga, mas também não leva!”
“Venho pregar a palavra de Deus!”. Ela saca o celular e o fone da bolsa e aumenta o volume, em vão.
O repórter anuncia a greve do transporte público marcada pra dali a três dias.
A garoa a alcança na ladeira de paralelepípedos, por isso ela passa a andar na calçada esburacada e cheia de degraus, tentando se proteger nos beirais.
Um reencontro, um bebê sorrindo e sujo, uma caminhada lenta.
Entra em casa e o pai grita da cama que ninguém trocou seu curativo.
A irmã rosna uma resposta qualquer do banheiro. Ela ajeita o bebê em frente à televisão, ao lado do sobrinho, e vai colocar a comida no fogo pra depois acudir o pai. Arroz, feijão e sardinha em lata. E umas folhas de alface.
Dá o chocolate que ganhou para o sobrinho, pede para ele esconder e não mostrar pro primo. A criança mal desvia os olhos da televisão e resmunga um agradecimento.
A vizinha vem pedir dois ovos, ela não tem.
O pai grita de novo pois agora está com fome.
Toma um banho rápido e passa aquele creme da propaganda nos cabelos. O produto promete brilho e maciez com “menos de vinte reais”.
Enquanto jantam, o bebê no colo, entre uma garfada e outra, ela abre as contas e reclama que deixam a luz acesa o tempo todo e o valor aumentou.
A irmã sai, ela pergunta pra onde, mas não há resposta. A madrasta chega do médico.
Outra vizinha aparece pra usar o carregador do celular porque o dela explodiu e aproveita pra reclamar da primeira vizinha, que é “folgada e só sabe pedir”.
Arruma a cozinha enquanto a madrasta dá banho no marido e nos netos postiços. A máquina de lavar termina o ciclo. Abaixa o volume da televisão e, na terceira tentativa, consegue colocar o bebê para dormir entre dois travesseiros. A novela acaba quando ela se senta para assistir aos vídeos e mensagens recebidos no decorrer do dia.
Desperta com o irmão estacionando a moto. Ele entra em casa oferecendo o resto de pizza que trouxe do serviço.
Ela come uma fatia, escova os dentes e vai pra cama. Se espreme entre o filho e a beirada da cama de solteiro. Do outro lado, a parede o protege.
Um despertar. Dois despertares. Cinco despertares.
O celular toca, são 5h.
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Autora: Raquel Paiva / @raquelterezani_escritora