Um dia eu acordei e não havia mais sombras.
Eram apenas eu e meus meninos.
Uma rede me abraçou, me levantou e me acolheu,
para então os meus filhos eu abraçar sem medo.
Desatei os nós das palavras proferidas por quem dizia que eu não era capaz.
Abri todas as feridas, me expus.
Cruzei a fronteira, atravessei a ponte, e do outro lado estava eu,
onde eu queria estar.
O lugar é desafiador, é duro, profundo, às vezes solitário, outras vezes coletivo.
Mas é meu, eu construo, destruo e recomeço.
Me reconheço.
Reflito meu lugar, minha ordem.
Eu sou a dona, a criadora e o acalento.
Eu crio pessoas, conduzo o caminho, respeito o tempo e incentivo o destino.
No meio do caos é preciso ter calma;
a paciência se cultiva com esperteza, é sobrevivência conviver com a nudez da realidade.
A loucura invade, enxuga a lágrima, amansa a fala,
grita em silêncio, outras vezes para todo o mundo ouvir.
Entre a carga de ser gente e cuidar de gente,
planejar a agenda, olhar o calendário, separar os dias,
os eventos da mãe, da mestranda e da mulher, acumulo cargos.
Desejo o silêncio, o ir e vir a qualquer hora.
Na agenda, não cabem eventos na terça.
Marca tudo para a tarde, quando as crianças estão na escola.
Desmarca a terapeuta, o filho mais novo não vai ter aula.
E, no equilíbrio dos pratos, sem deixar nenhum cair, ainda sinto que falho.
Mesmo com total desempenho, indo além das conquistas,
reconheço a potência, mas não sou gentil comigo.
Quando vem a angústia, é preciso relembrar tudo o que faço por eles e por mim.
Me orgulho ao ver a evolução de quem é minha responsabilidade, ser exemplo e zelo.
Quando olho pra mim, vejo outra pessoa.
Quem diria que alguém que dependia tanto hoje resolve tudo sozinha?
O caminho é mais do que desventuras:
as nuvens também se abrem, o sol retorna, o céu se ilumina,
e é aí que eu descubro, em um pequeno e banal afazer do cotidiano, que eu posso.
Eu posso cuidar de duas pessoas sozinha, melhor do que mal acompanhada.
Eu posso sorrir sozinha, e com quem eu quiser.
Eu posso caminhar e sentir o vento soprar, me lembrando o quanto é bom gozar da liberdade.
Eu posso descobrir quem eu sou, e também quem eu não sou.
Eu posso, num dia livre, experimentar meus desejos enquanto mulher,
e, na segunda, voltar a ser mãe.
Numa metamorfose, eu alcanço voo,
e nesse voo tem gente crescendo comigo.
E, nessa jornada, eu descubro o quanto eu posso,
pois eu estou onde eu queria estar
Por Priscyla Ludtke – @nutri_priscyla





