Coluna – Maternidade Atípica e Telas

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Auto-lembretes:


1. Para querer que meu filho não seja viciado em telas, tenho de reconhecer, antes, que eu sou viciada em telas. Trabalhar com redes sociais, em funções com uma alta disponibilidade de comunicação, ainda que de forma remota, custa tempo. Tempo de tela. E nesse caso, eu sou um espelho. Alguém me observa silenciosamente e copia meus gestos. 

2. Para uma criança que não se comunica verbalmente, a visualidade é seu maior recurso de assimilação, concentração e dispersão da atenção. Tudo o que vê, quer fazer, quer pegar, repetir. Se meu filho de três anos me vê, na maioria do tempo, com o celular na mão, ou diante de um computador, ou focada em uma tv, é natural que ele deseje estas mesmas coisas, à medida que também deseja minha atenção e companhia. 

Quantas vezes, a televisão, o celular, o tablet, se tornam a rede de apoio mais acessível para mães que precisam trabalhar por horas irrestritas, e para isso precisam de uma criança quieta – pra não dizer sedada – para conseguir concluir seus afazeres? Quantas vezes, mesmo sabendo que apenas uma horinha deslizando o dedinho pela timeline infinita de vídeos curtos no Youtube, é o suficiente para hiperestimular por horas um pequeno cérebro com Transtorno do Espectro Autista. O bastante para tirar o sono, a fome, e despertar crises ao menor sinal de desligar a bendita tela. No final, somos nós mesmas, mães atípicas, que pagamos essa conta – seja com a busca por suporte externo em terapias indicadas para a criança, seja com a nossa própria saúde mental (ou a falta dela). Haja culpa!

Em uma tese chamada “O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeiras e imagens“, o autor Norval Baitello Junior, já escrevia sobre os efeitos sedativos das telas, e o quanto a humanidade vem se “assentando” cada vez mais refém do mundo virtual, em uma teledependência (dependência daquilo que é distante, como navegar por realidades muitos distintas da sua própria; ou experimentar padrões de beleza obtidos através de filtros e inteligências artificiais); junto a uma teladependência (o dispositivo digital como extensão do próprio corpo, em que a tela é capaz de atender a diferentes necessidades do ser humano). 

É inegável que muitas tecnologias se tornaram cada vez mais úteis, e justamente por essa razão, exercem enorme poder sobre nossas vidas. Vez por outra me pego pensando como era a vida sem elas. Voltando algumas casas, o tempo parecia mais lento, e não era tão absurdo ficar um dia inteiro sem acesso à internet. 

Não por acaso, ao maternar uma criança autista, tendo a achar que seu comportamento agitado, tanto pode refletir o mundo ao seu redor; como também uma energia que não tem tempo de ser gasta correndo pela rua, subindo em árvore, caindo de bicicleta. O tempo do brincar mais “analógico”, demorado, de se sujar e melecar toda a casa, diminuiu. O tamanho das casas diminuiu. A quantidade de crianças por família diminuiu. O quintal, às vezes, nem existe. Restou o sofá da sala. Diante de uma tela cheia de cores e estímulos, até aqueles brinquedos mais caros se tornam entediantes. Como consequência, o adoecimento psíquico aumentou. Os transtornos e ansiedades vêm aumentando. 

Quando me dou conta, penso que ainda há de caber nessa rotina o tempo de trocar o brinquedo pela brincadeira, a tela pela massinha, os potes de tinta, ingredientes de uma receita maluca para fazermos juntos, sem pressa. Dizer sim para a bagunça da casa, como quem tenta organizar a culpa dentro do peito. 

Sim, a tela tem sido um recurso em diversos momentos, principalmente para conseguir manter meu filho estável em momentos mais sociais, como festas de família, fora da sua rotina e do seu ambiente seguro. Me dói vê-lo fixado, sem interagir com o mundo à sua volta, ainda que eu tente, e veja ele preferir correr em fuga, pra bem longe do contato com pessoas “estranhas”. Ainda cercada de familiares e pessoas amigas, muitas vezes estamos sozinhas na compreensão das necessidades específicas de nossos filhos atípicos. Então, como condenar algo que ainda me permite breves respiros?

Na maternidade estamos sujeitas ao erro o tempo todo. Na maternidade atípica, estamos inventando metodologias próprias, onde o erro é praticamente um pressuposto, a base para o acerto. Em meio a cobranças internas e externas, em todas as tentativas frustradas, é necessário lembrar que nós também precisamos de cuidado, tempo, descanso. E em cada pequeno avanço, juntamos os pedaços que sobram do cansaço e celebramos cada sorriso. De alguma forma, isso parece zerar tudo. E lá vamos nós outra vez.

Créditos da foto: @amariadefilm; intervenção de Marina Holanda.

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