O filme “Até a Última Gota”, produção recente da Netflix, retrata com brutal honestidade o esgotamento mental extremo que muitas mães enfrentam silenciosamente. Mais do que simples cansaço ou exaustão física, ele revela um colapso psicológico profundo, que aos poucos corrói a sanidade e confunde as fronteiras entre realidade e imaginação. Ao acompanhar a jornada de uma mãe solo, o filme expõe como a pressão constante pode devastar o equilíbrio emocional, mergulhando-a em uma espiral dolorosa de sofrimento.
O enredo revela uma escalada inquietante de sintomas: insônia constante, irritabilidade crescente, dificuldades de concentração e uma fadiga incapacitante dominam a protagonista. Inicialmente, são sinais típicos de estresse crônico, mas logo dão lugar a algo mais sombrio: episódios delirantes, onde a mente confusa cria realidades alternativas como tentativa desesperada de fuga. Nesse ponto, já não há apenas sofrimento emocional, mas uma distorção profunda da percepção. O espectador acompanha, em tensão crescente, o colapso mental de alguém que não encontra mais recursos internos para lidar com o peso esmagador da vida cotidiana.
Quando o cansaço vira colapso: o retrato de uma dor invisível
Infelizmente, essa não é uma realidade distante de milhares de mulheres brasileiras. Em 2024, mais da metade da população do país já considera a saúde mental o principal problema de saúde, um salto preocupante desde 2018. O SUS, na tentativa de dar conta da demanda, realizou quase 14 milhões de atendimentos psicológicos apenas no primeiro semestre deste ano. Mesmo assim, o número crescente de pessoas em sofrimento revela que o sistema de apoio ainda está longe de suprir as necessidades da população. E, em meio a esse cenário, o número de mães solo também cresce: hoje já são mais de 11 milhões no Brasil, vivendo diariamente a sobrecarga de sustentar e cuidar sozinhas de seus filhos.
A trama ainda toca em uma ferida social profunda, a desigualdade. Um estudo realizado no Rio de Janeiro expôs uma face cruel dessa disparidade, mostrando que pessoas pretas têm quase quatro vezes mais chances de morrer por doenças mentais do que pessoas brancas com o mesmo nível de escolaridade. Mesmo entre os mais instruídos, pretos e pardos apresentam menor acesso à Atenção Primária à Saúde para tratar essas enfermidades. Soma-se a isso a constatação de que a desigualdade social gera estresse crônico, ansiedade e depressão de forma ainda mais aguda, já que faltam recursos, oportunidades e acesso adequado aos cuidados de saúde mental.
“Até a Última Gota” não oferece respostas fáceis, mas transmite uma mensagem poderosa: a resiliência humana tem limites. Sem redes de apoio efetivas, políticas públicas que realmente funcionem e uma maior sensibilidade social, o colapso mental deixa de ser um caso isolado para se tornar uma ameaça constante. É fundamental enxergar o sofrimento silencioso dessas mães não como fraqueza, mas como o resultado de uma sobrecarga brutal e sistemática. Enquanto essa realidade persistir, muitos continuarão à beira de um abismo onde a sanidade se desfaz aos poucos.
Kátia Assad é fundadora da Consultoria de Saúde Mental Psico.delas, psicóloga clínica, coach e educadora há mais de 30 anos, com experiência em atendimentos clínicos, palestras e treinamentos corporativos.