Peitos submissos

P1333247 1 Julia P 767x1024

Sou mãe de três filhos e amamentei três vezes por mais de dois anos. Mas a última experiência está sendo radicalmente diferente. E o que mudou, além do meu corpo, que iniciou esse processo aos vinte anos e hoje tem mais de quarenta, foi o contexto.

Minha produção, nas duas primeiras vezes, era excedente em mais de meio litro de leite por dia. Os bombeiros vinham uma vez por semana buscar os potes que eu congelava. Isso durou mais de um ano em cada uma das duas experiências. Amamentando, eu me sentia potente, gigante, alimentando meus filhos e salvando as vidas de outros bebês. Sentia a espinha arrepiar, o peito formigar e o leite jorrar. Meus filhos suavam e dormiam saciados naquela fartura.

Na terceira vez, eu esperava o mesmo. Mas, dessa vez, estava encurralada, pisando em ovos e silenciada num cenário de abuso psicológico. E, dessa vez, o leite não veio.

Sentia coceira, sentia os sinais da produção, sentia umas gotas vazarem. Porém, não conseguia armazenar nem 100ml para ir trabalhar. Tentei de tudo. Fui ao Banco de Leite Humano do Instituto Fernandes Figueira, que anos antes recebia minhas doações, onde me acolheram com a competência e empatia de sempre. Tentaram analisar meu leite, mas não tinha como ordenhar nem umas gotas para o exame. Minha filha estava perdendo peso. Ouvi, com responsabilidade e cuidado, a notícia que me desmoronou: “Ela vai precisar de fórmula”. Minha filha também havia sido vítima da violência que nos cercava. A amamentação dela foi impactada nos primeiros meses de vida — não por uma decisão minha ou por incapacidade, mas pelo ambiente hostil que me paralisava em todos os níveis.

Esteticamente — e não menos importante, eu antes me justificava pelas mudanças do meu corpo, pelo fato de ter sido alimento para os meus dois primeiros filhos crescerem sempre “acima da curva”. Agora, meu peito era feio, caído, inútil. Um consolo afetivo importante, talvez, mas não o suficiente. A fórmula virou base. O afeto sobreviveu, no entanto, a amamentação plena foi interrompida. Eu me via frágil, pequena, pouca.

Foram quatro anos de silenciamento. Microviolências diárias camufladas de presença: uma presença sufocante que aos poucos me colocava dentro de um pote de vidro esterilizado. Uma mulher gigante capaz de alimentar dois bebês com fartura e ainda doar litros de leite por semana, ajudando a salvar centenas de outros, não era mais capaz de extrair uma gota. Como isso aconteceu? Como podem dois peitos que espirravam leite terem ficado submissos? Como pode alguém que sabe quem é, que sabe se defender, que tem corpo, voz e história, ter que sair fugida, depois de ser trancada e empurrada?

Aos sete meses da minha filha, fui embora. Ao segundo episódio de violência física, no exato momento em que descia definitivamente as escadas daquela casa para buscar a protetiva que me guarda até hoje, senti meu peito formigando. O leite voltou a escorrer. Ainda não sabia, mas, a partir daquele 19 de outubro de 2023, minha bebê nunca mais precisaria tomar leite de fórmula. Em segurança, morando por dois meses na casa de uma amiga, meu corpo voltou a ser alimento e, pouco a pouco, estou retomando meu lugar imenso no mundo. Desde então, minha filha mama. Mama com gosto, com saudade. Mama quando volta da casa do pai e precisa se reorganizar. Mama para dormir. Mama para viver. Ela está com dois anos e cinco meses. Segue suando de tanto mamar.

Por Julia Pastore – @juliapastore82

Autor

Deixe um comentário

Rolar para cima
0

Subtotal