Gramática da maternidade

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Que a palavra mãe seja um substantivo feminino me incomoda. Não pretendo discutir com a gramática nem com os dicionários. A convenção diz: Toda mãe é uma mulher.

Essa condição tem seu preço. A quem cabe cuidar, alimentar, lembrar que as fraldas estão acabando e que no próximo sábado tem vacinação é o substantivo feminino. À mãe cabe distinguir os diferentes significados de cada choro, ter na memória quando o filho sorriu pela primeira vez, engatinhou, o nome do medicamento que funciona nas crises de alergia. 

Mãe é palavra com força centrípeta, trazendo para si e matando no peito o que aparecer pela frente.
A Psicologia avisa que se alguém desempenhar a “função materna” na vida de uma criança, está tudo certo. O pai, o avô, um irmão, um tio podem cumprir esse papel. Na vida real, nessa que atravessamos, é nas mãos da mulher que carregou a cria durante nove meses que recaem as faturas. 

Espera-se dela, da mãe, que faça os pagamentos de forma amável, alegre, bondosa, empática, sábia, amorosa, sincera, cuidadosa, inspiradora, companheira, dedicada, defensora, batalhadora, angelical, protetora, conselheira, iluminada, abençoada e por aí vai. Uma constelação de adjetivos que orbitam em volta do substantivo mãe.
Santa Mãe. Santa Paciência para essa batelada de exigências.

Na multidão uma voz se manifesta: não sou mulher e troco fraldas, dou mamadeira, acordo nas madrugadas, busco na escola, participo da reunião de pais e mestres. Outras vozes ecoam, espalhadas pela camada terrestre.
Estão dentro do jogo e não se contentam com o papel de observadores passivos. Não os comparo com aqueles que fecham a porta da sala durante o jogo de futebol, no domingo à tarde, para não serem incomodados com os choros irritantes de um bebê faminto, uma criança acelerada ou uma mãe exausta. Aqueles que nem sempre falam, mas pensam: quem pariu, que cuide!

O entendimento do que é masculinidade e paternidade está mudando. Mas os homens são cobrados enquanto pais, na mesma medida que nós mulheres somos como mães?  Se eles são parceiros, a sociedade diz que ajudam. Vamos bater palmas para os pais “fofos” que colaboram. 

Ajudar. Verbo transitivo direto. Quem ajuda, ajuda alguém. O pai ajuda a mãe. Ela, figura principal da ação, necessita de apoio, que pode vir da creche, dos familiares, dos vizinhos. Não do pai. Deles, queremos algo mais que suporte, auxílio, assistência.

No mundo que desejo para os meus filhos, um pai pode dar colo, chorar junto, escolher presente e levar na festinha. Pode lavar fraldas e ser o que sai da reunião de trabalho, aquela inadiável, para levar a criança ao pediatra.
Mãe pode apitar o jogo de futebol, esquecer de descongelar a carne para o almoço do dia seguinte, não fazer as compras da semana. Tudo vai depender do combinado entre as partes. Responsabilidades partilhadas, não divididas. 
Me pergunto se existirá um dia em que uma mulher poderá exercer a maternidade sem culpa? 

Que saia com suas amigas em uma sexta-feira a noite, e deixe as crianças com o pai. Que passe algumas semanas de férias sozinha em alguma praia do Nordeste. Que escreva textos sobre qualquer tema, futebol, luta livre, marcenaria, moda ou sexualidade sem ser julgada.

Que use do seu tempo na certeza que a função mãe e a função pai caminham interligadas. Que haverá domingos em que ela é que vai esticar as pernas no sofá e assistir tranquilamente sua série favorita ou o torneio de basquete.
Sem sentir sua consciência pesando uma tonelada. Sem ganhar o rótulo de mãe má. Mãe desalmada. Mãe folgada. Mãe doida. Mãe irresponsável. Que ela não seja acusada por não ter desenvolvido seu instinto materno, aliás um artifício milenar que só serve como recriminação. 

Um sujeito semear filhos com várias mulheres e ir abandonando-os pelo caminho a cargo das mães, sem dar seu nome a eles, é tão corriqueiro que ninguém se espanta. É algo visto com naturalidade.

Ele pode se dar o direito de questionar o valor da pensão alimentícia, queixar-se de que a mulher mãe vai muito ao cabeleireiro, gasta demais e que seu filho é malcuidado. Ou justificar que ele não queria filhos, ela os teve porque quis. Se não queria, que fechasse as pernas ou usasse um método contraceptivo, pois ao homem cabe procriar. 

As mudanças estão acontecendo? Elas estão aí e eu é que não as enxergo? Exagero, pois não se pode mudar coisas que são da natureza humana? Torno indigna a função materna e a diminuo? Mãe é mãe, independentemente de qualquer coisa?

Sou mãe. Mãe de dois. Amo ser mãe. Não me arrependo, nem por um segundo, desse substantivo em meu currículo de vida. Mas isto não me isenta de querer rever conceitos que sempre aceitamos como naturais. Já me senti muito cansada, sobrecarregada de responsabilidades, exigências, ideias perfeccionistas.

Mudanças começam com o desconforto. Acabou-se o tempo em que doía e ficávamos em silêncio. 
Sofrer chorando baixinho, debaixo do chuveiro não é motivo de elogios, sinal de que se é uma guerreira.  Ninguém merece ser colocado no lugar de fortaleza.

Não existe essa mágica da mulher frágil, virar uma super-heroína depois de parir. A mulher não morre quando nasce a mãe. 
A palavra mãe nomeia ações, sentimentos, qualidades que cabem a qualquer gênero. Feminino e masculino. Na próxima mudança ortográfica, sugiro colocá-la na prateleira dos substantivos abstratos, ao lado da palavra pai.

Mãe Luiz, mãe Ana, mãe João, mãe Ivan.  Pai Maria, pai Sandra, pai Bel, pai Osvaldo.

Eu sei e você sabe que é preciso muito mais que mudanças na Língua Portuguesa. Mas a provocação pode começar pela gramática. 

Por Maribel Vazquez – @tangerinacontos

Revisão: Gisele Sertão

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