Mulheres-mães protagonistas da própria história

Presença de mãe

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No fim da tarde de hoje, meu filho sentou pra lanchar comigo. Durante anos, as noites de quarta eram chamadas de “noite das garotas” e continham um rolezinho obrigatório regado a gordura saturada e suco de laranja sem açúcar, ou seja, não havia regras. Como sempre, sentamos para comer juntinhos e na hora do “tin-tin, amiga”, eu ouvi um “mãe, é amigo”… ops, amigo! desculpaê, está muito recente e, às vezes, escapa!

Enquanto comíamos, olhei para ele e vi a minha criança de sempre! Que gosta de meter os pés nas poças d’água que a chuva deixa. Tem uma curiosidade maior que o mundo. Fica um tempão no espelho ajeitando o cabelo e que passa o dia aperreando o gato e fugindo dele.

Meu filho ainda gosta de matemática e conta, todo orgulhoso, que eu o ensinei a ler. Também monta quebra-cabeças, fala pelos cotovelos, gosta de pão com queijo e de jogar bola. Continuamos lendo duas páginas de algum livro toda noite, e como sempre, lhe dou um beijo, um abraço e um afucho na hora de dormir.

Nem sempre ele foi meu filho! Quando nasceu, era uma filha e saiu da maternidade de roupa rosa, quarto decorado de borboletas, laços de fita no cabelinho espetado. Conforme crescia, lhe vestia de bailarina e princesa, heroína e boneca, e coloquei nele todas as coisas que socialmente usamos e delegamos como “coisas de menina”.

Mas, apesar de tudo isso, de toda essa influência, ele rasgava as meias-calças, arrancava os laços dos cabelos, chorava pra não colocar vestidos. E eu, “a mãe”, dividida entre o medo do desconhecido e a dúvida se uma criança de três, quatro, cinco anos, sabia, de fato, o que sentia, acolhia em silêncio as demandas que surgiam. Perto o suficiente pra ele saber que eu estava ali, mas longe o necessário pra não sufocá-lo com as minhas expectativas.

E como um vendaval que derruba os jarros da estante, aos seis anos de idade, no meio da pandemia, ele me disse: aqui dentro, eu sou um menino e se você quiser, pode me expulsar de casa. Abracei-o com todos os braços que existiam no meu coração de mãe, choramos juntos e enquanto ele pedia “desculpas por ser estranho”, eu lhe dizia que não havia, absolutamente, o que desculpar.

Adoraria mantê-lo na proteção de meu ventre e de meu abraço para sempre, mas fico toda orgulhosa quando o vejo se apropriar de quem é, com o olhar confiante de quem gosta do que vê! Agora, ele é o meu menino! O nome antigo ficou na memória, as fotos “de antes” guardadas na caixinha, a lembrança de uma transição amorosa, acolhedora e tranquila, gravada, pra sempre, no coração dele.

No fim, para além de meia dúzia de pronomes e umas peças de roupa, quase nada mudou. Nem o cheiro do cabelo, nem o som do sorriso, nem a doçura da nossa amizade… meu menino sempre esteve ali.

Hoje, comemos em paz, mamãe-e-filhinho! Amanhã, retornaremos à vida e aos olhares gelados de quem aponta e diz: É falta de mãe!

Pois eu respondo: falta de mãe é que não é! É presença de mãe! É presença de amor de mãe que acolhe o filho, seja ele quem for! É coração de mãe, grande, gigante, onde sempre cabe um pouco mais de amor! E é lindo o caminho de quem se sabe amado! Acolham e protejam as crianças trans, elas existem e merecem uma infância feliz.

Não é fácil ser a mãe de uma criança trans no país que mais mata pessoas trans no mundo, mas eu sigo encontrando em cada sorriso amoroso dele, a força e a resposta pra seguirmos em paz.


Autora: Me chamo Dani, farmacêutica, professora, escritora e mãe de Eduardo, um menino trans de 7 anos. Sou feita de palavras azedas, silêncios doces, e café amargo. De caneta em punho, escrevo pra derrubar meus muros e dessalgar meu pranto. Instagram: @danigsantana.

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