Mulheres-mães protagonistas da própria história

Eu não sou um kit completo

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Vocês provavelmente, assim como eu, já ouviram alguma vez mulheres que são mães e solteiras serem chamadas de “kit completo” quando começaram a se envolver com alguém. Esses dias ouvi de um amigo, que sempre quis ser pai, que estava se envolvendo com uma mulher maravilhosa, incrível e mãe, e que isso era tudo que ele queria, pois já era um “kit completo”. Meu estômago revirou imediatamente e levei algum tempo pra digerir o que me incomodava tanto naquela expressão (eu já contei que sou lenta, né?).

Depois compreendi que essa história é problemática de várias formas. É claro que eu sei que esse amigo não teve a intenção de ser ofensivo. Pelo contrário, pois a mulher ter filho, pra ele, é algo muitíssimo positivo e bem-vindo. Mas na essência da coisa, o mais comum é que esse termo seja usado de forma pejorativa (principalmente por homens, sabemos), inferindo que essa mulher-mãe já vem com problemas, choro, birra e demandas que muita gente não quer bater no peito e assumir responsa nem quando é ele mesmo o próprio pai dessa criança – vê lá quando não é o genitor.

E o que isso, usado dessa forma, reforça, consciente ou inconscientemente? Primeiramente, a ideia de que estas mulheres estão loucamente à procura de alguém que faça o papel de pai dessa criança (o que por si só já contraria a ideia de “completo”, rs). Depois, de que ela não é um indivíduo além da maternidade; e a criança muito menos.

Ah, mas não foi nesse sentido que seu amigo estava dizendo, certo? Certo. Mas qual é o problema de se usar essa expressão de forma “positiva” então?

Além dos mesmíssimos já citados acima (pois nesse caso ele seria a pessoa a suprir a necessidade paterna daquela relação), o reforço da ideia de que a mulher só se completa quando se torna mãe. Porque se pra uma pessoa que deseja muito ser pai, encontrar e se relacionar com uma mulher que tem filho a faz ser completa, o que são as que ainda não os têm ou que não desejam ter, então? “Incompletas”?

Sem falar na isenção de responsabilidade que ronda a paternidade por si só, e que é redobrada quando os genes não saíram desse homem que agora adentra nessa família. Ele não terá o trabalho de acompanhar uma gestação, um puerpério, as mudanças físicas e duras crises de identidade que nos acometem quando passamos a ser seres responsáveis pelo cuidado e criação de outro. Isso tudo já foi passado e já veio “pronto”.

E a possibilidade de sair daquele relacionamento sem o remorso do abandono? Sem problemas, pois “não sou o pai e, portanto, não tenho obrigações”, não é mesmo? Ah, tá. Mas e a responsabilidade afetiva de que tanto falamos atualmente? Ela se deve somente à mulher? E a responsabilidade afetiva com a criança, que cria vínculos?

A história não é exclusivamente minha: por experiência própria e por relatos de amigas, conhecidas e desconhecidas, tudo segue maravilhoso naquele “kit completo”, até que as birras, a demanda por atenção, comida, carinho, cuidados básicos e limitações rolezísticas começaram a dar as caras.

Rapidamente aparece o “olha, amo como se fosse minha filha, mas eu não tenho obrigações como você tem porque não sou pai, então preciso ir pra minha casa e podemos nos ver depois, tá bom?”. Tá bom. Como vou “cobrar” algo nesse momento se a pessoa realmente não tem obrigação, e o pai, que deveria ter, não está disposto?

E digo pra vocês que essa fala costuma vir sempre quando a mãe está no limite, estressada, cansada, totalmente sobrecarregada e precisa de ajuda pra não perder o controle. Quando a mãe precisa cumprir algum prazo no trabalho e precisa de uma rede de apoio por duas horinhas ou na hora de tirar um cochilo depois do almoço… nem é em momentos de grandes desafios não, hein!

Observemos ainda que, quando o rompimento entre esse casal ocorre, o mais comum é de se ouvir, mais uma vez: “fulana é como uma filha pra mim e eu gostaria de continuar tendo contato e de continuar pegando, visitando e levando pra passear, tudo bem?” E aí quando a gente diz “nossa, que ótimo, porque ela te ama muito também, então tudo bem!”, esses homens desaparecem.

No máximo aparecem uma vezinha só, pra levar por 15 minutos à pracinha do quarteirão de cima e a partir daí passam a mandar um áudio uma vez por ano cantando parabéns no aniversário da criança pelo whatsapp e nós, mães, além de termos que lidar com o nosso processo de compreensão do término, ainda temos que lidar com a dor que as crianças sentem junto. É cruel!

Mas Luana, por que você se ofende tanto com isso? Você não se sente completa sendo mãe? Não, eu não sinto! Pelo contrário: me tornar mãe me tornou incompleta. Eu vejo mães que se dizem realizadas com a maternidade e admiro profundamente, mas eu estou o mais distante possível de me sentir completa.

Eu perdi quem eu era antes e sinto saudades de mim. Eu perdi um tanto imenso de liberdade, eu adquiri muito mais dívidas, demandas e responsabilidades, eu me tornei estatística social (mãe-solo, gravidez improvável, não planejada, fruto de relação abusiva, etc). Eu não tenho mais a opção de cortar laços com o genitor 100% pro resto da vida como eu gostaria. Eu não posso mais perder o controle, não posso mais não ter medo de morrer, não posso mais almoçar só a hora que der fome, nem sair com amigos que não compreendam o rolê do desenvolvimento cognitivo da criança – ou só nem posso sair mesmo.

Tive que abrir mão de muitos sonhos e ainda assumo aqui publicamente que possuo uma atitude muuuuito mais séria e sem graça do que eu realmente sou quando estou na presença da minha filha e que às vezes chego a pensar seriamente se não possuo dupla personalidade por causa disso. Onde existe a completude nisso tudo?

E olha, resumi muito aqui, sabe? Reafirmo meu respeito e admiração pelas mulheres que se realizam na maternidade, mas por favor não venham me dizer que, mesmo essas, são um kit completo, porque não somos kits. Não somos pacotes de viagem pra virem passar férias dentro dessa família.

E antes que venham com essa pergunta: sim, eu amo minha filha. Aquela coisa romântica de descobrir um amor gigante e inimaginável aconteceu comigo também, mas eu não a amo mais do que amo a mim mesma (podem me julgar!).

Eu sou um indivíduo cada vez mais incompleto, tentando aos trancos e barrancos não me perder de mim mesma enquanto executo a função complexa que é preparar um outro ser para a vida em sociedade.


Por: Luana Fraga – Instagram: @luatsuru.

Revisado por Luiza Gandini.

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