Mulheres-mães protagonistas da própria história

Crônica | Que trincheira é essa?

Crônica | Que trincheira é essa?

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Eram três da tarde ou mais. Eu ando sempre atrasada, não sei bem. Eu li o pixo ‘desculpa o atraso me perdi num poema’, deve ser isso que me adianta tanto mas me atrasa infinitamente nos dias todos que não me reconheço na luta – a revolução dos homens. Porque poema e luta são amantes eternos, mesmo que se percam de vista às vezes, pra endurecer a luta de um e o poema do outro.

Eu estava caminhando e tropecei na classe trabalhadora. Sabia que eu fazia parte daquilo ali. Mas disseram que não era bem assim.  

Na reunião da vida, ouvia:

– Volta, olha bem esse caminho, você está tropeçando, não sabe caminhar na linha retinha, equilibrada? Presta atenção! Você está fugindo do centro, quer caminhar pelas periferias agora? Olha bem, não tem tempo para essa bobagem, olho roxo, saia levantada a força, economia do cuidado, outdoor ….da violência? 

Olha aqui, você já está bem atrasada, caminhou errado e vai falar disso aqui? Esse território até te quer, tua história e tuas dores são bem-vindas, mas vamos organizar, porque assim estão atrapalhando o andamento da revolução. Diziam eles, com toda a falsidade do mundo, enquanto eram cuidados por alguém.

– Obrigada querida pela sua participação, mas se você olhar bem ao teu redor as caixas que descartamos, usamos às vezes pra reciclar tradições e prioridades que ajudam a manter o foco. É sempre sobre manter o foco, não é por maldade. 

E ela seguia tentando:

– Precisamos radicalizar… as mulheres… elas… nós… classe…
Milhares foram as tentativas dela. Seguiu o encontro do atraso, não só das horas, mas do rumo não tão radical assim…

Assim os camaradas repetiam:

– O problema não somos nós, é você mesmo, mas não é problema, é que tem outras prioridades, sabe? Você leu nos nossos livros e manuais sobre como lutar por um mundo diferente? Lá explica tudo isso. Você não deve ter lido, né? Mas deixa que eu te explico. Repetiam eles incansavelmente.

– Você e essas outras aí que ouvi dizer que estão querendo mais coisas dentro do que já está definido… olha o que é o centro, presta atenção e seguimos na luta pode ser? Ouvi falar de índio, de raça, por favor, de invisibilidade? Vocês estão aqui, não estão? Vão com calma. Estamos concentrados aqui planejando a revolução.

Se quiserem falar essas questões podem falar, mas falem num tom mais baixo, na cozinha… da pra passar um cafezinho pros camaradas enquanto isso meu anjo?Ficou linda nessa roupa hoje, já te disse?

Amanhã tem piquete, e a greve… não tem greve pra essas coisas aí que você está falando né, minha querida?! Estamos organizando as falas pro megafone, é sobre trabalho… aí seca a saliva, sabe como é, né?

Ah, não, deixa quieto… achei que podia saber por ver nos filmes ou qualquer coisa assim, tem um documentário bom pra aprender a falar em público, pra aprender sobre o que é política… pra aprender sobre o que é exploração do trabalho… ou eu posso te ensinar mais tarde, eu fiz tantas formações né, de repente você aprende algo comigo, o que você acha companheira? Eu tenho muita paciência… mas nossa, ainda to precisando daquele cafézinho…

Vários eram eles, os revolucionários entre pratos limpos e roupas lavadas com cheiro impregnado de privilégios, organizando o megafone, reuniões e ilusões. E a voz silenciada seguia:

– A greve é importante pra nós….mu…lhe…re…s… por…que…
Falou ela. Diversos foram os motivos. Passava o café e falava. Cada reticência uma interrupção rotineira com gosto de naturalização violenta. Enquanto isso os camaradas saíam pra fumar seu cigarro, conversar sobre a greve de verdade… ela argumentava, ninguém ouviu. 

Seguiu a greve. Seguiu o café.

Aquele café não foi mais o mesmo, o amargo não era só de falta de açúcar, mas falta de empatia. Esse amargor não se basta com açúcar, nem com reforma, nem concessão divina dos camaradas.

Açúcar nosso, da nossa luta não vem refinado, vem graúdo, resistente, endurecido com a doce ternura que devia ser servida no café da manhã da revolução anunciada. Seguiam eles – os revolucionários:

– Mas sabe como é, né…? Depois a gente toma outro café, apara essas arestas, só não vamos perder o foco, está bem?

Estamos te ouvindo companheira, mas é que tem a greve antes, tem as condições materiais antes… você entende? Não seja ousada… muito menos ambiciosa… sem histeria.

“Condições materiais”… ela riu enquanto olhava em direção a cozinha e via o amontoado de louça lavada, comida feita, barriga cheia das crianças agarradas na sua saia, hipocrisia e sonhos esvaindo entre as mãos. 

Respirou fundo e comentou:

– Que linda essa foice e martelo na capa do livro embaixo dos seus braços, uma maravilha sua voz no megafone… cabe esponja, vassoura e panelas nas mãos de vocês também? Ela falou. Eles riram. E eles concluíam nada constrangidos com sua arrogância silenciadora:

– Bom, coloca na pauta aí, se der tempo a gente vê. Mas o café ficou amargo, hein? Tem mais açúcar?  

Próxima pauta.


Autora: Me chamo Daniele Rehling, sou militante feminista, professora e sou mãe de um bebê de 6 meses, o Ravi. Instagram: @danielerehling.

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