Mulheres-mães protagonistas da própria história

Corpo gordo, corpo grávido: jeito certo, jeito errado

Corpo gordo, corpo grávido: jeito certo, jeito errado

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Ontem acordei 4 kg mais gorda. Eu não sabia que estava, mas estava. Quem deu a notícia foi o corpo branco, magro e asséptico. Verdadeira criatura advinda da etnografia dos Nacirema. O médico. 

Quase enfartei. Venho cuidando com tanto afinco dessa ansiedade que me assola e que me faz querer abrir a porta dos armários e da geladeira e me afogar em cada gota de tristeza armazenada. 

Eu cedo às tentações da carne mal passada, do refri gelado e da coxinha dourada trazida pelo meu amor para essa alma cansada, que tenta gerar vida num contexto de morte. Me culpo. Negocio os termos do pecado com a penitência: três porções de fruta para cada imprudência. Pois está lá na memória a primeira experiência e tudo o que não repetir.

Na primeira gestação, que foi de um menino, foram 20 kg a mais no meu corpo, até então, sadio. E eu já o via distorcido antes mesmo de fazer xixi no palito — sou gorda desde que me entendo por gente. 

Já até cedi ao gozo de um professor de intenção questionável que teve a “sensibilidade” de me colocar de globo terrestre em uma peça de teatro. As lágrimas de outrora me fazem rir, e afastar tal lembrança na mesma velocidade que veio. “Vá de retro.”

Desde então, travo uma luta constante para me reconhecer no espelho. Sem ressentimentos, respeitando a que veio. Meus seios são fartos mesmo, como de minha avó. O formato dos meus pés não sei de onde vieram; só conheço metade da genealogia. E tá tudo bem, na maioria dos dias.  

E assim seguiram os 16 anos de puerpério desde a última vez que fui uma só. Hoje meu corpo é extensão de duas. E logo será de três. Com toda ranhura de estria, com toda linha de expressão me dada pela vida que sustenta o mundo nas costas. 

Então, imagina minha indignação, quando aquela pessoa que só me vê em números, que não conhece a forma e o conteúdo dos caminhos que me trouxeram a este mundo; bronqueou-me pelos quilos “além do razoável”. 

Dirão-me que é por motivo de saúde, mas meus exames estão em dia. Pressão arterial, taxa de glicemia, colesterol dentre as margens; e pasmem: tudo isso no contexto de uma pandemia. 

Lembrei de uma influencer que sigo. Ainda labuto para entender o real sentido dessas falas dissonantes aos meus ouvidos. Mas a @atletadepeso bem que nos coloca de sobreaviso: sempre haverá um “bem intencionado” para falar que está preocupado com a maneira como administramos nossa saúde somente pela forma de nosso corpo. Ninguém cobra hemograma em dia do corpo magro. 

E lá no começo de tudo quando as duas listras apareceram no palito, a minha primeira pergunta ao universo foi se eu teria corpo para parir e sair viva. A resposta veio a galope. Lembrei de uma outra referência, desta vez mais próxima (@angelicadepaula); que advoga com maestria na tarefa de demonstrar ao mundo que o corpo gordo é passível de beleza e afeto. Ela tomou minhas angústias nas mãos. Reforçou essa falsa simetria. Que nem todo magro é saudável e nem todo gordo é terminal. 

E cá estou, 4 quilos mais gorda, mais grávida, mais lenta, disforme, fora do padrão, por vezes, insegura. O algoritmo é cruel. Os falsos profetas da maternidade são ainda piores. Todo dia uma técnica imperdível de como maternar mais e melhor: mais magro, mais saudável, mais ecológico, mais registrado, mais amamentado, mais…. até que você se sinta menos. Cada vez menos capaz. 

Ainda bem que nunca me contentei com menos. Eu vou ser mais eu mesma e deixar as expectativas fulas da vida. Aqui só se lida com o real e o possível. Que os perfeitos lidem com o jeito certo e o jeito errado. 


Autora: Luciana Brauna, @luciana.brauna, mãe da Isabela de 16 anos; gestando a Helenita há 4 meses. Cientista Social, poeta escrevivente e produtora cultural. 

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