SOLOS (Sozinhos no Brasil) é uma série de ficção científica. São diversas histórias de encontros e reencontros dos personagens consigo mesmos. Em diferentes contextos ficcionais, cada persona se encontra em um momento de autoconhecimento profundo. O elemento de ficção científica funciona como uma roupagem para introduzir a situação de conflito, mas o que os episódios realmente trazem são reflexões sobre questões subjetivas que, de um modo ou de outro, nos afetam na condição de seres humanos: medo, carência emocional, apego, insegurança. O quanto somos capazes de olhar para nossa mais profunda psique e realmente nos compreendermos? E, desse lugar, nos perdoar?
O episódio 5, porém, além de tematizar uma jornada de autoconhecimento, traz luz a uma questão que também envolve uma relação entre mãe e filha. E é disso, portanto, que quero falar. Leah, a protagonista, é uma cientista brilhante que busca desenvolver a viagem no tempo a fim de salvar a vida da mãe, chegando a um futuro em que se conheça a cura para esclerose múltipla. Logo no início do episódio, podemos ver como ela se consome entre o trabalho com sua pesquisa e os cuidados intensos que a saúde da mãe exige dela. Essa é uma realidade de muitas mulheres da chamada “geração sanduíche”. Muitas delas ficam entre os cuidados com os filhos e a necessidade de assistência aos pais idosos, estejam doentes ou não — tudo isso, claro, enquanto são profissionais exemplares. A mãe de Leah “sempre chama por ela, só quer a ela”, como pontua a irmã de Leah no telefonema em que sabemos da condição familiar da protagonista.
Acontece que ela consegue fazer contato com seu “eu” do futuro e, posteriormente, com seu “eu” do passado (de antes de a mãe ser diagnosticada). Elas conversam sobre trivialidades e ficam à sombra do “efeito borboleta”, teoria que permeia quase todas as histórias de viagem no tempo e que defende que, se a pessoa do futuro for avisada de qualquer coisa, ela pode alterar toda a linha temporal tentando mudar o futuro — e que isso causaria o fim da existência de todas as versões históricas que dependem daquele acontecimento. Portanto, se uma Leah contasse à outra algo realmente importante sobre a vida dela, seria possível a Leah do futuro simplesmente deixar de existir.
Mas a conversa de Leah consigo mesma, ao longo da história (que não contarei mais para não dar “spoiler”), toma um outro rumo quando começam a conversar sobre o estado de saúde da mãe e a necessidade urgente que sentem de encontrar uma cura — uma solução definitiva e imediata — para que o sofrimento de mãe e filha tenha um fim. A fala de Leah traz à tona um fato sobre doenças degenerativas e quem cuida de mães (e pais) nessa situação.
Quando a pessoa tem uma doença assim, principalmente quando há efeitos neurológicos, quem está por perto perde essa pessoa aos poucos. O filme Para sempre Alice mostra esse processo de forma delicada e reflexiva, mas muito mais com enfoque na pessoa da escritora que sofre de Alzheimer. O que quero trazer aqui é o lugar de quem fica. Quem acompanha o avançar da doença acompanha o se perder da pessoa amada, dia após dia. Afinal, o que nos torna quem somos? Quanto do que somos para nós mesmos e para os outros depende das lembranças que temos, da consciência do presente e do passado?
Na última vez em que vi minha mãe, ela já não me reconheceu. Nos últimos anos de vida, ela mal sabia onde estava, quem eram seus filhos, a idade que tinha. Eu me coloquei no lugar dela e pensei o seguinte: o que sobraria de mim se eu não tivesse nenhuma lembrança de minha versão mãe? Se eu me esquecesse de minha filha, qual seria a noção de mim mesma que sobraria para minha consciência? O quanto perdemos, para a irremediável efemeridade da natureza, a pessoa nessas condições, dia após dia? Para mim, o sentimento é bem claro: a lembrança de minha mãe (e agora de meu pai), da maneira como eles realmente eram, das pessoas que realmente eram por inteiro, se foi muito tempo antes do falecimento do corpo. A sensação de perda me atravessa desde muito antes de vê-los aos pés da cruz na capela.
Penso que esse episódio trouxe muito do que sentem tantas pessoas, tantas mulheres que, sendo mães, também são filhas e se encontram nessa realidade difícil. Minha mãe era uma avó faceira — já com mais de dez netos, sempre pedindo mais. Mas ela não pôde desfrutar com minha filha o mesmo que teve com os netos mais velhos. E isso também me fez pensar no quanto dela, da pessoa que era minha mãe, ainda estava ali. Aquela mulher era, com certeza, minha mãe. Uma das mulheres que mais amo na vida. Aquela a quem eu corri ao colo tantas vezes. Mas, ao mesmo tempo, já não era ela — não por inteiro. Pois minha mãe, em sua total pessoa constituída, jamais perderia a oportunidade de morder a bochecha de minha filha, ainda que sob meus protestos. Mas ela nunca fez isso. Talvez (provavelmente) porque não reconhecia naquela “menina tão linda”, como ela dizia quando via minha filha, uma neta. Senão uma menina linda, filha de alguém, neta de alguém, com quem ela não se relacionava. Então, a minha mãe avó da minha filha, eu percebi, eu já tinha perdido.
O nome da série, Sozinhos, dá o vislumbre do que devemos procurar entender em cada episódio. No caso desse, o episódio Leah, o que temos é a solidão de uma filha que está o tempo todo com a mãe. A solidão de se estar com alguém por tempo determinado, limitado, com dias contados, valorizando cada segundo junto sem, contudo, nesses momentos, sentir-se inteiramente junto dessa pessoa. Não de verdade. Não totalmente. Porque a pessoa já não está mais totalmente ali.
Para tantas mulheres-mães, cujo cuidado se divide entre filhos e pais, as políticas de cuidado são imprescindíveis e urgentes. Se a doença e sua evolução são inevitáveis, as condições de vida para quem atravessa uma jornada de perda progressiva e irreversível podem ser melhoradas, certamente. Trata-se de uma necessidade de tratamento humano — para quem vai e para quem fica. E é necessário, também urgentemente, falarmos sobre tudo isso.
Serviço:
Disponível no Prime
Criador: David Weil
Gêneros: Série de televisão, Ficção científica, Soap opera, Drama