Coluna – Presentes da sala de espera

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No mês de abril deste ano, minha querida amiga Nati Afonso e eu fizemos uma live sobre as mudanças ocorridas na nossa vida pessoal depois do diagnóstico de autismo de nossas filhas. Falamos sobre carreiras, sobre relações com a família, sobre vida social reduzida, e também sobre os bons encontros que tivemos, a começar pelo nosso.

Nati é uma das amizades que fiz depois de receber o diagnóstico das gêmeas, e uma das que mais dura até hoje. Nos conhecemos através de um concurso promovido por outro grupo de mães de autistas. 

Ainda que nossas trocas sejam com poucas palavras, poucas interações no Instagram e alguns áudios no zap, cada uma delas é valiosa e potente. Toda conversa com ela é uma recarga de energia para mim. Falar com ela é como sentar confortavelmente num sofá depois que o dia finda e conseguir respirar com calma: Nati sabe bem o que passo, ainda mais porque estuda muito sobre autismo; não preciso dizer muita coisa, não preciso provar nada, não preciso pedir autorização para reclamar ou rir de mim mesma. Isso eu chamo privilégio. Aquele que as mulheres achamos muito pouco no nosso cotidiano: o simples ato de não ter que se explicar e provar e validar cada uma de suas palavras.

A tal da solidão da mãe atípica, já devidamente denunciada por nosso grupo, é real em todos seus cruéis detalhes: estamos sendo sempre convocadas a provar que não é “coisa da nossa cabeça”, que não estamos “aumentando demais as coisas”, que a criança faz mesmo tudo que falamos que ela faz, estamos sempre sendo julgadas, comparadas, menosprezadas e isoladas

Viramos um ser monotemático, uma mulher chata, uma mãe superprotetora demais. As pessoas cansam de nós e nos descartam porque afinal “todo mundo passa por algum problema na vida e a gente devia parar de achar que somos mais injustiçadas que as outras”...e, nisso, fatalmente, caímos em depressão, desenvolvemos fobia social e ansiedade.

D’ aqui em diante, eu falo em primeira pessoa: me custou a saúde mental e se eu me levantei desse buraco foi graças a muitas mãos de mulheres, de mulheres-mães, sobretudo a de mulheres mães atípicas que conheci nos grupos de zap, nas lives de Instagram, nas salas de espera de consultórios, hospital, nas reuniões e eventos só para autistas.

Pessoalmente, não consigo hoje cultivar muitas relações, fiquei assim, cansada e me sobrecarrego fácil com as conversas e as demandas de novas amizades. Preciso que essas relações sejam leves. Preciso que sejam trocas reais, que não esperem que eu responda tudo na hora, que aceitem meus atrasos, minhas eternas promessas não cumpridas de uma visita, que entendam que eu queira beber e rir alto nos dias que não estou com as crianças. Preciso que essas pessoas amem minhas crianças e as aceitem sem me dar nenhum conselho.

Diferentemente de outro momento mais sombrio, como o pós-diagnóstico, eu não espero mais que as pessoas venham me salvar dos dias cansativos e cheios, nem espero que se toquem que eu tenho muita coisa para dar conta, eu não espero mais empatia, nem que sejam informadas. Mas, por outro lado, hoje eu deixo claro quando preciso de ajuda, nas salas de espera quando escuto uma mãe perdida, levo as informações que posso dar, partilho com as amigas só o que pode gerar realmente um papo bom. Caso eu precise chorar, eu recorro a quem não me julga: Ou minha terapeuta ou uma mãe atípica próxima.

Aprendi a fazer dessa rede de mulheres meu espaço seguro, onde posso desabafar, desabar e vibrar por conquistas pequenas e bobas.

Sim, existe o isolamento social, mas tem também todo um mundo de possíveis relações férteis que surgem nas brechas do nosso cotidiano cheio. Entendi, depois de algum tempo, como toda interação com mães é um tesouro, com mães atípicas é ainda mais potente, saímos nos sentindo pessoas novamente quando escutamos da outra “Te entendo, irmã…sei bem como é”.

Eu queria ter mais disposição emocional e abraçar ainda mais essas mães que cruzaram meu caminho desde o diagnóstico. Muitas delas, ainda temos contato e falamos esporadicamente sobre as crianças e o dia a dia. Outras, eu perdi de vista com as trocas de horários, as trocas de cidade, as trocas de escola. Acontece, né? Agradeço a elas por cada risada e pela fruta partilhada.

Ainda essa semana, descobri que uma das minhas vizinhas tem uma adolescente autista, tal como eu, é claro que a gente já se viu na rua e ela já sabia de mim, mas tivemos dez minutos de prosa e pareceu que eu estava falando com uma amiga de infância. O sorriso dela e o jeito leve que me disse “suas meninas estão lindas, benza Deus” renovou minha esperança na humanidade. 

Novamente, me senti vista.

Meu desejo é que todas nós olhemos para o lado e encontremos nessas companhias de trincheira os bons motivos para lutar, porque a luta é diária e contínua, mas, não, não deve ser solitária. Não só precisamos andar juntas como merecemos esse andar juntas, merecemos comunidade, vila, aldeia e colo. Merecemos tudo que andar em pares tem de bom. (Claro que precisamos também receber tratamento adequado para nossa saúde mental e uma visita que lave a louça e a roupa acumulada).

De minha parte, prometo estar mais atenta, viu vizinha? Prometo a mim mesma me lembrar onde acho forças quando o caos se instala. De minha parte, sou grata a todas que andam comigo.

Autor

  • Lila Arevalo

    Sou Lila Arévalo, nome artístico que escolhi para escrever. Sou historiadora de formação e agora estou escritora, poeta e mãe.
    Há uns dois anos estou com meu perfil literário, o @l_i_l_a.a/, mas eu escrevo há muito tempo e principalmente sobre minhas questões existenciais. Minhas filhas caçulas são autistas nível 3 diagnosticadas desde os 2 anos, hoje elas têm 8. Em breve lançarei meu primeiro livro que será de poesias e fotografias autorais.

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