Desde que a gente recebe o diagnóstico, a gente enfrenta uma dura realidade: a negação. Não só de nossa parte, mas, com maior impacto, da parte de quem nos rodeia. Os avós insistem que não é nada demais, os familiares pedem que você busque novas opiniões, e os amigos tentam dizer que talvez seja só uma fase.
É quase como ouvir “ela não é doente, não”. Coisa que minha avó diria na lata… porque, talvez, só talvez, ela não tivesse filtros por também carregar essa genética.
Desde o dia em que recebemos relatórios e CIDs, passaram 8 anos já. Muita coisa foi superada, muito esforço foi colocado na jornada, mudanças radicais nas nossas vidas foram feitas e, com certeza, muitas lutas foram travadas. Se eu tivesse que dizer um número de horas de terapias já feitas, ele seria perto de 35.000, elevado ao quadrado, já que são gêmeas.
Aqui, já fizemos DENVER, ABA, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, natação, equoterapia, dançaterapia, e muita intervenção caseira, visto que nós, pais, fizemos cursos e cursos sobre estimulação precoce.
Temos uma rotina super estruturada, uma mãe que trabalha como freelancer porque 8h CLT não é realidade para quem precisa sair correndo e pegar a filha em crise na escola. Temos um pai, servidor público, com redução de carga horária, e temos irmãs mais velhas que, sim, mesmo me doendo dizer, ficam à margem e recebem menos atenção.
Temos muita gente que chegou, ajudou e aprendeu, e tivemos muita gente que só atrapalhou e deixou meus dias piores. São 8 anos de muito trabalho para que elas sejam elas mesmas, para que recebam suporte para fazer o que elas têm capacidade de fazer, para que tenham autonomia mínima, para que sejam vistas como pessoas que podem e devem fazer parte da sociedade.
E, no entanto, na fila do dentista, a enfermeira diz:
“Se ela não tivesse falado embolado, eu nem diria que era autista.”
A vizinha disse: Suas filhas são ótimas, nem de longe são autistas severas, como você disse.
A nova coordenadora da escola ousou dizer: “Elas até conseguem ler, né?”
E alguém na praça as vê correndo, como qualquer criança, e diz: “Elas não têm cara de autista, não. Você já foi de novo no médico ver isso?”
Respiro fundo e, pedagogicamente, porque sou professora, explico que é condição, não doença, que elas tiveram diagnóstico precoce e isso ajudou a evitar mais atrasos, que fazem muitas terapias ainda para manter os avanços em dia, que superaram muita coisa, sim, mas sempre terão necessidade do suporte de alguém.
Mas eu queria mesmo era esbravejar um: sua fala é muito capacitista.
“Precisamos nomear as coisas para conhecê-las”, diz a teoria de Kant sobre a construção do conhecimento. Vamos nomear, então: dizer que elas até conseguem, supor que a mãe diz que é doente, mas não parece ser, dar conselhos sem ter nenhum conhecimento sobre o tema, é CAPACITISMO.
Aceita que dói menos: somos frutos de uma sociedade estruturalmente capacitista. A boa notícia é que, provavelmente, você não é uma pessoa ruim. O capacitismo tem como principal motivo de existir o fato de que não convivíamos ou aprendíamos sobre pessoas PCD, não as víamos, não lidávamos com elas. Até uns 30 anos atrás, ir para a escola nem era possível. Frequentar lugares como supermercado, loja, praça, menos ainda: nem rampas eram obrigatórias.
Viviam, as pessoas PCD e seus familiares, em um submundo. Fora dos olhares e dos julgamentos. Era por vergonha e por proteção, também, esse lugar escondido. Autistas altamente funcionais e gênios até tinham lugar no mundo, mas não sem cair em rótulos ou ter momentos de crises terríveis que são sempre lembradas.
Sim, não ter contato nos deixa sem informações, sem conhecimento, de como lidar com quem não é igual a nós. Ignorância é um motivo real, mas não é mais um obstáculo: há muita informação, boa e segura, em todo lugar. Ser capacitista pode não ser por mal, mas é inaceitável.
O pior, no entanto, de uma fala “ela nem parece autista”, é a incrível mágica que ela faz: de um só golpe, você invisibiliza toda uma jornada de esforços e trabalho para que aquela criança exista, a despeito de suas limitações, da melhor forma no mundo. Você diz que ela é boa, válida, real, porque não parece ter nenhum defeito.
Ela não pode parecer normal, real, inteligente, se ela for autista?
Que caixinha pequena essa em que as pessoas colocam os autistas, né? Tem que ser muito limitado, muito dependente, tem que ser um ET. Se parecer só uma criança feliz correndo na praça, não pode ser autista. Todo o esforço dos pais, dos terapeutas, da escola e das próprias crianças é, assim, apagado.
Não temos uma epidemia de diagnósticos, deixe-me dizer novamente isso: menos de 2% da população tem diagnóstico (dados do IBGE, não meus). E, quando finalmente temos um, e acesso a terapias, e muito trabalho feito, a criança, bem desenvolvida, perde automaticamente seu diagnóstico?
Não se deixa de ser autista: obstáculos são superados e novos aparecem todos os dias! O mundo não é um lugar confortável para a nossa existência e não se molda a nossas necessidades.
Falei no começo do texto da minha jornada aqui, sei da de muitas outras famílias, e por isso peço hoje: por favor, use as frases corretas para elogiar minhas crianças.
“Ela está ótima, bom trabalho, mãe!” Ou
“Aurora, você se supera todos os dias!” Ou
“Lua é muito inteligente e consegue fazer as lições propostas, né?” Ou
“Elas mostram ter evoluído bem”.
Não esqueça que, se é para elogiar, precisa elogiar tudo que está por trás desse parecer “normal” (seja lá o que for isso…).





