Coluna – As pequenas coisas da vida

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Quando ouve a palavra “abandono”, em que você pensa?
Há inúmeras formas de se abandonar alguém ou de se sentir abandonada. Para muitos, isso é algo trazido da infância: abandono parental. E quando um relacionamento afetivo termina antes do que esperávamos, e não por nossa vontade? Sentir que o outro não tem mais interesse em nossa presença, que nossa companhia já não é mais bem-vinda, é muito doloroso. Mas e quanto ao abandono que trazemos dentro de nós e, muitas vezes, apenas é refletido naqueles que nos rodeiam?

Quando pensamos em nossa relação com filhos, marido, o que está nas raízes desse vínculo, afinal? Conectamo-nos com o/a parceiro/a por afinidades, por atração, por amor. E, por amor, expandimos isso à prole. Mas como sabemos como fazer isso, como demonstrar essa conexão e, mais importante, mantê-la?

A série As pequenas coisas da vida explora essa intrincada teia de relacionamentos que nos rodeiam e nos alteram profundamente, quer queiramos ou não. Clare se encontra em um momento delicado da vida, com vários aspectos em desequilíbrio: carreira, família, vida sexual. A história nos leva junto com ela por uma trama que, entre presente e passado, nos faz entender como ela se deixou estar em uma situação tão insolitamente complicada. Expulsa da própria casa, ela dorme clandestinamente no trabalho, enquanto tenta se conectar com a filha, que parece odiá-la (adolescente!). Embora lembre vividamente dos conselhos da própria mãe sobre ser dona e responsável pelas próprias escolhas, acaba se deixando levar por péssimas escolhas e atitudes, muitas delas autodestrutivas.

Conforme a trama segue e ela se vê obrigada a sair do fundo do poço onde se meteu, em passos curtos e lentos vai se dando conta dos próprios erros, tanto no presente quanto em sua vida pregressa. Nas sessões de terapia com o marido, no reconhecimento de seus erros com a filha, sempre a partir da memória da mãe, a personagem lentamente deixa-nos ver sua humanidade, suas razões, suas feridas.

É já na metade final dos episódios que ela desnuda o abandono sobre o qual comecei esta coluna. Em uma viagem com a amiga, esta levanta-se e sai do workshop que assistiam, tal como haviam combinado previamente de fazer, já que o interesse delas estava em outra atividade. Clare, com vergonha, não sai junto com a amiga como combinado; ela fica mais alguns minutos e sai apenas depois que todos fecham os olhos para participar da dinâmica do evento. Quando encontra a amiga, que havia saído logo no início por não estar suportando a palestra, ela diz: “Você me abandonou”. Ao que a amiga responde: “Não te abandonei. Você ficou”.

Qual é a diferença entre sermos abandonados ou escolhermos ficar? Pensei em vários momentos da minha vida pessoal em que a minha escolha acabou por me deixar “ficar para trás”. Invariavelmente (como, aliás, a série explora muito bem), quando fazemos uma escolha, temos que preterir outra(s). Os caminhos que escolhemos definem, também, aqueles que não seguiremos. E, sim, às vezes escolhemos tanto os caminhos errados que podemos nos ver em um labirinto. Nesse caso, é preciso aprender a sair dele. Clare é uma mulher com sua criança interior ferida e abandonada. A ausência e o abuso do pai marcam sua infância e adolescência. Mas o que acho que a leva a sentir-se abandonada é a morte da mãe.

Afinal, quando alguém a quem amamos muito se vai, não há sempre uma parte da gente que se sente abandonada? O luto não é racional. Não importa o quanto saibamos que a pessoa não escolheu partir, o fato é que ela se foi e não nos levou junto. Mas também é verdade que, embora a mãe a tenha deixado, é essa mesma mãe que a ajuda a atravessar a tempestade retratada na série. Em cada passo acertado que Clare dá e que, por fim, a leva a estar de volta sobre os próprios pés ao fim da trama, há uma parte dessa mãe que se foi, mas também ficou. São as memórias de conversas e conselhos da mãe que a ajudam a seguir em frente.

Não é à toa que uma árvore ganha importância ao longo da história. São as raízes bem plantadas da mãe que levam a nutrição de que Clare precisa para se reerguer. Em outro momento, ela afirma, ainda na juventude, antes de se tornar mãe, que “não sabe ser boa sem a mãe”. O que ela não percebe naquele momento, com o falecimento ainda recente, é que essa mãe continua com ela, em tudo que enraizou na infância e adolescência. Essa presença vai sendo aos poucos notada por Clare, que, ao mesmo tempo, percebe que precisa ser essa mesma raiz para a filha.

Como qualquer pessoa traumatizada com a perda repentina, Clare transfere sua ansiedade da perda e, em determinado momento, afirma que “não poderia mais viver sem a filha”. Creio que esse pensamento seja o que a deixa ainda mais perdida quando acha que as atitudes da filha a estão colocando em risco. Afinal, quando ela não estiver mais por perto, quem cuidará da filha? É uma pergunta que perpassa a mente de toda mãe. Mas é esse mesmo pensamento que parece fazer acordar na personagem a força e a capacidade de agir melhor, de ser a mãe que a filha precisa e que ela consegue ser.

As pequenas coisas da vida, os pequenos conselhos, os momentos singelos de conexão e amor são o fio que conduz essa personagem para fora do labirinto de escolhas equivocadas, de volta para seu próprio centro. O que a faz voltar a se reconhecer e, de fato, ser dona das próprias escolhas talvez seja o que ela se lembra quando escreve seu primeiro texto na coluna, com o heterônimo de Suugar:

“Desde que você me ofereceu essa coluna, tenho me perguntado: ‘Quem sou eu para aconselhar alguém?’, pensando quem eu sou, afinal. Essa pergunta fica martelando: quem sou eu? Como me afastei tanto da pessoa que eu pretendia ser? A escritora que minha mãe acreditava que eu podia ser. Mas eu sei quem eu sou. Quando tudo dá errado e nada faz sentido, serei sempre três coisas. Sou a filha de minha mãe. Sou a mãe de minha filha. E sou uma escritora realizada.”

Para mim, o que fica de mais precioso depois de assistir à série é isso: apesar de todas as perdas e abandonos que possamos ter sofrido, permanecemos inteiros porque parte de todos a quem amamos permanece conosco para sempre.

Serviço: As pequenas coisas da vida. 2023. Baseada no livro Pequenas delicadezas, de Cheryl Strayed. Adaptado por Liz Tigelaar e produzido pela Best Day Ever Productions, Simpson Street, Hello Sunshine e ABC Signature. Disponível no Star+.

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