Acordei numa sexta-feira rotineira e durante os meus quinze minutos matinais de autocuidado pensei, mais um mês que se inicia. Pedi as bençãos e bora para as demandas da vida.
Despertei meu filho com um beijinho, e ele me disse, com a carinha mais linda desse mundo: – Ah mamãe, meu sonho estava tão bom!
O xixi, a água, o café do papai (nossa refeição favorita), o uniforme, o dente, o cabelo, o tênis e o abraço cuidadoso de até logo. E lá foi ele, pela calçada, de azul-turquesa.
Da sacada, olhava a sua calma ao caminhar naquela manhã fresca.
Hora de acordar a caçula, que demora para despertar.
O colo, o cheiro, e seguimos a sequência de afeto e cuidados, mas fomos interrompidos pela campainha, completamente fora de hora, o que será!? “Seu filho foi atropelado na porta da escola.”
Não pode ser. O coração disparou. Que desespero. Como ele está?, como assim?, quem?, não pode ser. Eu pude sentir o cheiro dos seus cabelos e, ao mesmo tempo, pensava em quais foram as nossas últimas palavras há 10 minutos um pro outro.
Aqueles 600 metros pareciam não ter fim, as lágrimas escorrendo, o corpo todo tremendo, a mente revisitando o nosso dia anterior cheio de atividades juntos, quantas pessoas, o SAMU, meu filho.
Encontrei meu filho caído no chão, imóvel, obedecendo às orientações da equipe de socorro, cheio de sangue, seus olhos miraram os meus: – Mamãe, eu te amo!
Meu filho. Que dor. Que dor foi assistir o seu sofrer.
Naquele dia celebrávamos dez anos da sua concepção, nosso segundo e desejado filho, e fomos invadidos pelo medo de perdê-lo.
Cada minuto que seguiu foi de dor e agradecimento. Nos abraçamos e agradecemos pela sua vida, nos abraçamos pelo medo do que viria, nos abraçamos para nos unir e atravessar aquele tempo, e sentimos uma tristeza profunda ao vê-lo chorar.
A vida virou de ponta cabeça e cabia a nós, união e cuidado. Depois da cirurgia, já em casa, com a rotina nova se iniciando e com apoio da família, veio o desejo de saber o que aconteceu naquela manhã tranquila, como todas naquela cidadezinha.
Algumas falas que escutamos no dia do acidente foram: “Ele se jogou na frente do carro!”- “O carro estava devagar”- “Você viu porque não pode correr menino!?” e nos dias seguintes nos encontravam na rua nos diziam exatamente as mesmas frases. Cruéis e insensíveis frases, diga-se de passagem, comuns em uma sociedade doente e que dá as costas para a infância. Completamente comuns. Mas eu não aceito. Eu não aceitei.
Sim, crianças se distraem. Meu filho estava caminhando pela faixa elevada de pedestres exatamente em frente à escola. Sim, ele se distraiu quando viu sua grande amiga, se animou e correu para o abraço, mas repito, sobre a faixa. Ele achou que estava seguro, porque, sim, era para estar.
Assistimos ao vídeo da câmera de segurança da escola. O condutor não parou e nem sequer diminuiu a velocidade diante da faixa, e simplesmente atingiu meu filho, cena chocante e desesperadora. O vidro do carro era tão escuro que não dá para saber o motivo da distração. Celular? Pressa? Problema de saúde?
Não nos disse, só disse que “não viu o menino”. Não viu uma criança, na faixa elevada de pedestres, de uniforme e na entrada da escola.
Nós somos os adultos. Nós somos os responsáveis. Mas foi meu filho quem teve seu direito violado. Meu filho quem foi ferido. E ainda foi considerado, pela comunidade local, como culpado pelo que lhe aconteceu.
Enquanto cuidávamos dele, o choro, a cadeira de rodas, o raio-x, a dentista, o ortopedista, UPA, fisioterapia, alimentação… eu me pegava pensando nesse provérbio africano, que sempre invade meu coração e me enche de tristeza e esperança: “É preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”.
Na nossa sociedade atual, ele soa como um sonho muito distante. Já que sempre nos vemos sós nesse papel sagrado.
Escrevo esse relato hoje, dia 08 de março, após acordar com as diversas mensagens de parabéns. Lembrei da tristeza desse dia, e o porquê de ele existir.
Pensei nas lutas diárias travadas por nós mulheres, que a sociedade esmaga, apaga, compra, precifica, deturpa e rouba. Das mães nem se fala!
Quantas mães, que assim como eu, tem suas filhas e filhos feridos por injustiça, por crime, por ganância, e em meio a tanta a dor, ainda escutam: “Quem pariu Mateus que o embale!”
E mães que perdem seus filhos para essa sociedade adoecida, e que não podem mais sentir o cheiro dos cabelos, conversar sobre o dia de ontem, abraçar apertado.
Lembrei do menino Miguel, que tentou voar até sua mãe. Que dor essa mãe sentiu e sente. Ele só precisava ser visto, abraçado, cuidado por quem estava ali, enquanto sua mãe trabalhava, mas a madame lhe negou o abraço e deixou o anjo cair. Que dor.
Aliás, era tempo de pandemia quando roubaram a vida de Miguel, tempo de negacionismo no Brasil, de irresponsabilidade enorme lembra quantas vezes saímos nas ruas e tudo funcionava normalmente, menos as escolas.
Onde estavam as crianças? Quem cuidou delas? Quem cuidou dos doentes? Qual o sexo, o gênero e a cor dessas pessoas?
Fui invadida pelo desejo de abraçar essas mães que todos os dias perdem suas filhas e filhos para a sociedade. Pras drogas, pra violência, pra fome para o patriarcado, para o capitalismo… quantas Elza Soares, quantas Maria Carolina de Jesus choram todos os dias espalhadas pelo nosso país?! Marielle Franco foi roubada de sua mãe, de sua filha, de sua mulher e de suas amigas.
Esses dias, uma amiga que teve o filho preso injustamente me disse, vá a um presídio e veja com seus próprios olhos o amor, a dedicação e o sofrimento das mães.
Será que no presídio feminino há fila também? Quem cuida de quem cuida? O abraço entre nós precisa acontecer.
Abrace uma mãe que está ao seu lado. Pergunte o que ela está precisando. Sinta o que suas lágrimas dizem, aprecie o sorriso forte, escute, dê a mão que seja para ir à padaria. Isso pode mudar o dia dela.
Lembre-se, ela é uma guardiã.
Eu jamais esquecerei dos abraços que recebi naqueles dias difíceis que atravessei ao lado do meu filho e da minha família, eu precisava ser forte, mas por dentro estava em pedaços. Eu precisei de cada um deles e ainda preciso.
Bruna Simões – @doulabrunasimoes
Revisão: Gisele Sertão