Ficou em segundo lugar no I Concurso Escrevivências Maternas 2024.
O coração do embrião ainda não batia. O ultrassonografista fez uma cara esquisita, disse que ainda havia tempo, mas que devíamos nos preparar, poderia ser uma gravidez inviável. Levamos as imagens para duas obstetras, a mesma cara estrambótica, a mesma incerteza.
Sete dias de espera para repetir o exame e ter uma resposta final. Por que vocês não aproveitam e marcam uma consulta com o Dr. Lair, um obstetra experiente? Essa gente nova quer fazer o tal do parto humanizado e não tem experiência alguma, não sabem de nada. Pais médicos, pitacos não faltavam.
O Dr. Lair nos atendeu no horário marcado, destoando de todos os obstetras que eu e meu marido havíamos visitado nos últimos dias. Atrás da cadeira do médico, um mural com fotos de muitos bebês que vieram ao mundo pelas suas mãos. Cara de papai noel, jeito amistoso, Como você está se sentindo, mãezinha?
Explicamos para ele o que estava acontecendo; mostramos todos os exames. Dr. Lair ajustou os óculos e se concentrou na análise dos resultados. Depois de cinco minutos, retirou os óculos, encostou as duas mãos espalmadas em cima da mesa com tampo de vidro e, usando um tom paternal, foi categórico: Mãezinha, o embrião está disforme, essa gestação não vai vingar.
Eu e meu marido nos entreolhamos e apertamos nossas mãos com força. Explicamos para o Dr. Lair que já havíamos sido alertados sobre essa disformia pelos outros médicos e todos eles foram cautelosos ao dizer que era preciso esperar. O médico balançou a cabeça, pegou uma das minhas mãos, Mãezinha, o que falta nos médicos de hoje é coragem; conte com a minha experiência, esse embrião não vai trazer ninguém vivo pro mundo.
Desabei.
Jorge desabou.
Nos abraçamos.
Dr. Lair nos observava com olhos de quem já viu de tudo no mundo, repetição de cena que viveu incontáveis vezes. Vamos marcar a curetagem? Assim essa situação ruim já acaba logo e vocês partem pra outra.
Recolhi os exames espalhados sobre a mesa. Agradeci mecanicamente a atenção. Puxei a mão de Jorge e corri para fora do consultório, elevador, garagem, carro, casa. Respira, Elis. Liguei para o meu pai e contei o ocorrido. Ele não quis espinafrar o colega, apenas um vamos aguardar, minha filha, vamos aguardar.
Uma semana. Sete dias. 168 horas. 10.080 minutos. 604.800 segundos.
Primeiro filho muito planejado bem planejado depois de namoro, noivado e casamento. Ácido fólico iniciado dois meses antes da suspensão da pílula. Ioga, hidroginástica, óleo de amêndoas para preparar a pele para as futuras estrias. Leituras sobre tipos de parto, cuidados com o recém-nascido, transição alimentar, depressão pós-parto. Longas conversas com Jorge sobre as escolhas que tínhamos de tomar, desde a cor do quarto do bebê até qual obstetra iríamos escolher; do nome da criança à nossa incompatibilidade sanguínea.
Eu não conseguia dormir; também não conseguia trabalhar. Pedi uma licença para ficar em casa de repouso. Deitada horas e horas, passando a mão na barriga ainda inexistente. Um bebê dentro do meu útero; um embrião disforme dentro do meu útero; um amontoado de células (vivas? mortas?) dentro do meu útero.
Sexta, oito horas da manhã; ultrassonografia marcada com especialista em casos sensíveis de embriões com defeito. Pode vestir essa camisola, mãezinha, que a doutora já vai te chamar. Eu e Jorge entramos na sala fria. Colocaram um gel mais frio ainda sobre a minha barriga. A médica iniciou o procedimento passando o scanner de um lado para o outro, de cima para baixo. A sua expressão facial estava relaxada, mas não me dizia nada. Agora vamos para o doppler, mãezinha, mais um pouco de gel geladinho, calma.
Um som rápido e ritmado invadiu o consultório. Ouçam essas batidas, casal! Esse bebê tá animado. Tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum. Um grito gutural emanou das profundezas do meu útero, misto de desespero, raiva e alívio. Jorge me abraçou desajeitado, médica e assistente deram um meio sorriso. Voltei a urrar e esse segundo grunhido assustou a plateia. A médica se apressou em finalizar o exame, recomendou levar os novos resultados a um obstetra e se retirou do consultório junto com a assistente.
Ficamos ali sozinhos, eu, Pedro e o coração.
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Autora: Mariana Carvalho – @marianacarvalhoescritora – Brasília/DF e Salvador/BA