A primeira vez que vi aquela mulher pequenina subindo no Vila Euro lotado, sentido bairro, foi marcante. Carregava em seus braços um homem feito (que aparentava ter o dobro do peso dela!) que a agarrava pelo pescoço enquanto emitia sons similares a grunhidos assustados.
Repetiu-se, rotineiramente.
Até sentarem, ela não conseguia acalmá-lo. Depois que alguém cedia lugar – e, geralmente, cediam; tirando um ou outro que fingia estar dormindo – ele, recostando-se nela, parecia, então, encantado com a paisagem quadrada, acabando em silêncio (para alívio de todos).
Desciam no mesmo lugar que eu. Da esquina, partiam à direita, em direção à favela. Eu, à esquerda, ia para casa, onde estavam o café e o lanche que minha mãe preparava, diariamente, aguardando a minha chegada do trabalho – e ela não queria que eu fosse de barriga vazia para a faculdade, mais tarde.
Eram tempos em que eu meditava menos sobre tudo. Tinha uns vinte e poucos anos. Jovem mimada, nem pensava em ter filhos.
Durante um bom período desta parte da minha vida, reincidentemente, tal cotidiano.
Três vezes por semana, lá estava aquela senhora imparável, com seu filho crescido no colo, no mesmo trajeto que eu, e que tantos. Tantos e mesmos. Tantos, de fato, desinteressados (e já bastavam os próprios problemas).
Alguns os olhavam com pena. Outros, com curiosidade ou repulsa. Poucos com admiração e compaixão. Eu permeava o grupo que misturava isso tudo. Notoriamente, a senhora não era de muita conversa. Parecia sempre bastante cansada (por óbvio) e poupava a energia que poderia ser gasta num suposto papo furado.
Só que, um dia, sobramos apenas nós e o condutor dentro do micro-ônibus (tinha vezes que nos apertávamos, ainda mais, em coletivos menores: “por serem mais econômicos para a empresa”, ouvimos dizer).
Íamos até o ponto final juntas. Eu, no meu canto. Ouvi:
- Menina, será que você poderia me ajudar a descer com a cadeira? Se não for incomodar?
Prontamente, fui levantando do banco e tentando encontrar maneira de carregar o objeto dobrável (ainda, sim, maciço) para auxiliá-la. Ela me confessou:
- Ganhamos a cadeira agorinha, mas esse carro aqui não tem acesso. Eu nem sei lidar direito ainda e esse motorista não tem a menor paciência, sai arrancando.
Concordei, acenando com a cabeça, com o dito sobre ele (que olhava pelo retrovisor).
Descemos. Salvos. Os três. Foi um fim de tarde em que me senti menos inútil, admito (mesmo que um senhor que bebia no bar de fronte tenha sido o benevolente dali em diante).
Depois do fato, vez em quando, ela esticava o olhar até mim, sorria abatida. Quando estávamos a sós, já perto de nosso destino, trocávamos algumas ideias. Ela me disse que o seu filho era portador de uma severa deficiência mental (o que, por consequência, lhe acarretava dificuldades motoras).
Por isso mesmo ela tinha partido, há anos, de uma modesta localidade no interior do Nordeste, em busca de ajuda na cidade grande. Mãe solo, expulsa da casa dos pais, ainda grávida – aos quinze anos – enfrentou, desde muito jovem, todas as mazelas possíveis. E as que pareciam impossíveis. As que caberiam em nossas imaginações e, provavelmente: as inimagináveis. Lembro-me bem de quando ela contou ter trinta e três anos: fiquei bastante surpresa. Ela parecia muito mais velha. O sofrimento lhe estampava o rosto. A coragem lhe enrugava a testa, ao mesmo tempo, em que sua força estava aparente em músculos mais evidentes.
Por sorte (ela afirmava), havia conseguido naquela metrópole uma rede de apoio. Uma Instituição (infelizmente, não me recordo o nome) que tratava o José Augusto com múltiplas terapias, de maneira gratuita, evitando um quadro ainda pior.
Os vizinhos, mais a prima cabeleireira que os abrigara no barraco, desde muito tempo, ajudavam com comida, roupas e, de sobra, um bocadinho de dignidade.
Acabei mudando de emprego; de repente, surgiu uma melhor oportunidade. Parei de pegar o ônibus no mesmo horário que Maria e seu filho. Dei conta de que, mesmo quase vizinhas, vivíamos em dimensões extremamente distantes. Não sabia nada dela, além daquela história densa; nem fui capaz de fazer mais do que ajudá-la a carregar coisas e sacolas pelos degraus do ônibus, em situações pontuais.
“Boa sorte pra eles! Deus os ajude… vida que segue”, pensei egoísta e praticamente.
Semanas à frente, uma cobradora conhecida de anteriormente estava, atipicamente, no horário em que eu voltava pra casa. Eu sabia que ela conhecia Maria, então resolvi assuntar. Ela me disse que tudo continuava do mesmo jeitinho.
Acabei confidenciando que me sentia culpada, que queria ter contribuído mais, feito algo por ela; e foi quando fui surpreendida como nunca. Ela me disse:
– A Maria é uma sortuda, pra te falar a verdade. Não se preocupe com ela não. O presente dela é ter um filho pra cuidar, até depois de crescido. E terá pra sempre! Os meus, já no começo da adolescência, nem lembravam mais que eu existia. De uma hora pra outra, eu deixei de ser importante e minha vida perdeu o sentido.
Pausou. Respirou. Abaixou a cabeça. Seguiu:
– Você, ainda não é mãe, né? Mas, se um dia for, vai entender o que eu tô falando. Mulher, depois que vira mãe, perde a identidade, vive pelos filhos. Quando os filhos se vão, não sobra nada… parece que nossa alma vai junto com eles.
Eu jamais esqueci o que ela me disse. Nem de seus olhos marejados, inundados de inveja e tristeza.
Pensei na minha mãe, nas minhas avós, em todas as mães que eu conhecia. Quase todas, realmente, ainda queriam viver pelos filhos, mesmo que eles não mais precisassem, necessariamente, que assim fosse. Refleti.
Paradoxo, encontrei um resquício de razão naquela fala, mesmo depois de tudo que Maria me relatara sobre a sua vida. Ponderei. Achei que eu jamais estaria preparada pra ser mãe. Por uma ou outra razão.
Resolvi que não seria; mas o destino me pregou uma peça.
Hoje, mãe de um molequinho de onze, mais de duas décadas depois de ocorrido o relatado, tenho pensado muito nessa história do passado. Comparo e noto como eu tenho privilégios enquanto mãe. Mesmo. Que sorte. E, não nego, remoo, o que não faço por aquelas que não têm as mesmas facilidades que eu. Por que não faço absolutamente nada por milhares de Marias?
Em contrapartida, assumo como é difícil entender e aceitar a máxima de que, no alto de minhas regalias, quanto mais desimportante eu me tornar para o meu filho, talvez, mais eu esteja fazendo o meu trabalho bem feito; e que, presumivelmente, nem seja natural, nós, mães, nos anularmos na totalidade por este vínculo precioso, a ponto de perdermos por completo nossa identidade, nosso rumo, nossa história. Decerto, por um período, pode até ser compreensível; mas para sempre? Por que tamanha dificuldade em deixar ir?
Nem sei se estou me fazendo entender.
Quero dizer para que sejamos mães, com toda a intensidade que isso represente, pelo tempo que quisermos, que pudermos, que precisarmos – com toda a pressão, medo, angústia, cansaço, dificuldade, alegria, amor e dádiva que isso possa significar – mas, antes de tudo, que sejamos nós mesmas. Que aprendamos, mais do que, presunçosamente, achamos poder ensinar.
Quem sabe a gente não vai se ajudando nessa louca aventura da maternidade e consegue colocar um monte de gente legal no mundo? Quem sabe, também, a gente não se resgata?
Por Dani Blasio
Revisão: Angélica Filha