Diário de bordo: 280º dia

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Sabe o que mais me irrita? Perder o controle da situação. Até ontem, minha vida estava perfeita. Não precisava de mais nada. Aliás, nada, para mim, significava tudo. Adoro nadar, boiar, mergulhar e o que mais me acalma, desde que desenvolvi a capacidade auditiva, há mais ou menos uns 5 meses, é o som submerso, que mixa as ondas sonoras com as aquáticas. Meu biossonar que me conecta ao universo. Desde que me conheço por gente, escutava aquela voz interna: “Nada! Nada! Nada!”, isso tudo acabou de uma hora pra outra.

Dava um sono o dueto tum-tum, tum-tum ritmado de nossos corações. Que saudade! Lembro da primeira vez que senti essa vibração, lá pela 10ª semana. Outro som que me animava era o ronco do estômago dela que estimulava meu apetite por coisas esquisitas. Tipo comer pão queimado, mastigar pó de café, beber limonada salgada. Queria experimentar cabeça de fósforo riscado, mas esse ela não me permitiu. Quando a gente tá no meio do oceano, as vontades são doidas.

E sua voz aveludada me inundava de um amor que nunca vi. Parou de beber por minha causa. Tinha certeza: ela me amava. Quando cantava, então, eu ia a êxtase e viajava. Era o canto da sereia.

Mesmo com o espaço encolhido no meu barco, ia tudo bem, até que veio o maremoto. Nunca fui boa em navegação, nem em mar calmo. Imagina meu desespero prevendo um tsunami. As ondas queriam me expelir a todo custo. Apelei para Yara, a mãe d’água, e até para Iemanjá. Lutei para manter o leme, mas o destino não quis. Era maior que minhas forças. Aí a bolsa estourou e fui expulsa de minha própria casa na 40ª semana.  A harmonia foi por água abaixo.  A lua tinha participação nessa história.

Morri? Não ouvia mais aqueles sons reconfortantes. Estava sufocada. E levar o polegar até a boca era um movimento impossível. Seria o fim? Antes fosse. Era o início de uma fase horrível, no mundo de luzes, cores e barulhos irritantes. E um frio danado! Estava tudo de cabeça para baixo. Meu corpo pesava uma tonelada fora do mar. Cadê o ar?
Em vez de um abraço de boas-vindas da mamãe e do papai, a mão com luva de borracha me deu um tapa nas nádegas. Meus pulmões se encheram de oxigênio pela primeira vez. Não sei o que doeu mais: o tapa ou o ar inaugural da vida. Com o susto, os alvéolos grudados estufaram, feito bexiga guardada no porão há meses, e pensei que iriam estourar. Então ouvi minha própria voz explodindo num miado de gato. Que horrível ficar de ponta cabeça! Não enxergo nada. Pra piorar, agora tô sentido náusea.

Quero engolir líquido amniótico! Chutar a barriga da minha mãe. Bocejar, dormir e ouvir o coração dela. Ficar quentinha no meu canto. Como é difícil nascer, minha Deusa! Quero voltar para meu barco, meu mar, minha bolha, meu colchão de placenta. Eu não pedi isso. Alguém sabe onde é o porto para retornar?

Mas peraí. Esse som é familiar. “Tum-tum… tum-tum…”. E esse cheirinho de leite. Hummm… Tentador. Minha boca está fazendo os movimentos de peixe. Não consigo controlar. São instintivos. É isso. Agora sou uma peixa fora d´água. Até que é gostoso… Não posso falar mais nada agora. Nada! Nada! Nada! Amanhã decido o que fazer da vida.

Por Vilma Martins Schiante – @vilmaschiante e @contocomvilma

Revisão: Stefânia Acioli

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