“É preciso uma aldeia para criar uma criança”. Referido provérbio carrega em si, dentre outros infinitos significados, duas dimensões a partir das quais é possível tecer algumas reflexões.
A primeira se resume à importância que a troca e os cuidados de uma comunidade desempenham no crescimento da criança e na sua capacidade de desenvolver valores sociais e comunitários.
A segunda, remete ao fato de que a responsabilidade de criar e cuidar de uma criança não deve recair apenas sobre a família nuclear, mas deve se dar com o apoio da comunidade, em corresponsabilidade.
Mas foi-se o tempo em que a mulher podia optar entre trabalhar e deixar “as crias” sob o cuidado de terceiros ou mandar o emprego às favas para dedicar-se integralmente à maternidade. Em tempos de pandemia, ter opções virou artigo de luxo.
Diante das medidas de enfrentamento à Covid-19, o isolamento social vem se constituindo na forma mais efetiva de conter o avanço da doença no país e, para seguir as orientações da OMS, muitas empresas adotaram o regime de teletrabalho, também conhecido como “home office”.
O teletrabalho foi inserido no nosso ordenamento jurídico pela reforma trabalhista de Michel Temer (Lei nº 13.467/2017) e reforçado como instrumento apropriada ao momento de crise pelo governo Bolsonaro por meio da MP 927/2020.
E foi com a adoção do teletrabalho que surgiu um novo tipo de puerpério: mães que, expostas à sobrecarga emocional diária, precisam se desdobrar em jornadas triplas para conciliar o trabalho remunerado com a rotina da casa, dos filhos e até da escola.
A diferença é que nesse novo puerpério as dificuldades com a amamentação e demais cuidados com o recém-nascido cederam lugar ao exercício da atividade laboral das quais a lactante, então em licença-maternidade, estava desvinculada.
Não se nega que a possibilidade de vivenciar a maternidade em tempo integral constitua um verdadeiro privilégio e viabilize o estreitamento do vínculo materno com os filhos. Tampouco se ignora que a opção pelo teletrabalho pode ser vantajosa em algumas realidades específicas. Mas, sem trocadilhos, este bônus também tem seu ônus.
Para a mulher que fica em casa, tendo de cuidar dos filhos em tempo integral e sem poder contar com o respaldo das escolas ou mesmo de formas de entretenimento social, como parques, museus, cinemas e teatros, encontrar um tempo para destinar ao exercício da profissão, seja em atividades de produção intelectual ou mesmo na participação de reuniões por vídeo conferência, é um desafio diário que gera vários tipos de medos e ansiedades, então resumidos à incerteza da autossuficiência, ao receio do desemprego e à manutenção da saúde emocional.
Isso sem falar no contingente cada vez maior de famílias monoparentais em que as mulheres, além de trabalhadoras, também são chefes de família, verdadeiras provedoras do lar.
De acordo com a Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, seis milhões de famílias chefiadas por mulheres cadastradas no Bolsa Família tiveram, além de prioridade no cronograma de pagamento, o benefício em valor dobrado, de R$ 1.200,00.
Nesse viés, ao se tratar do “home office” exercido pelas mães no período de pandemia, faz-se necessário que não apenas a sociedade, como também os empregadores, observem que:
– Há a necessidade de uma mínima rede de apoio. Esse tipo de trabalho só pode ser realizado se houver a possibilidade de se delegar os cuidados dos filhos a outra pessoa por algumas horas do dia. Ao contrário do que se possa imaginar, é impossível produzir com qualidade com crianças à tira colo ou choros à queima roupa. Impor o trabalho remoto a mulheres que não contam com qualquer parceria é esperar que as mesmas empreendam um labor noturno que sequer será remunerado.
– O volume de trabalho é sempre maior. Em regra, o empregado em home office, seja homem ou mulher, trabalha por mais horas e com mais intensidade. Como não há controle de jornada e todos os meios para trabalhar estão à mão, gera-se o clima de que “toda hora é hora” e as demandas não param de surgir. Se para todos os empregados há intensificação da exploração, no caso das mães é ainda mais evidente. Os empregadores se esquecem de que não foi apenas o ambiente de trabalho da empregada que foi alterado. No isolamento, a trabalhadora passa a concentrar em si também rotina da casa, da escola e os cuidados com os filhos. Nesse ponto, destaca-se a necessidade de se levar em conta as peculiaridades da realidade das mães ao avaliar a produtividade e o desempenho nesse período.[2]
– É mais cansativo porque gera retrabalho. As constantes interrupções em razão de chamadas, de reuniões, dos horários e das rotinas familiares geram retrabalho e inúmeros recomeços de raciocínios que insistem em não se completar.
– É incontroversa a dificuldade de conciliar vida profissional e familiar. Nunca foi fácil para as mulheres conciliarem todas as tarefas domésticas e a vida pessoal com a vida profissional, mas, nesse contexto, fica ainda mais difícil. Por isso, exigir criatividade e produtividade é um tanto injusto, e até inadequado ao momento.
Em suma, com esses breves apontamentos, busca-se explicitar o óbvio: as mães, no contexto de isolamento social, estão ainda mais sobrecarregadas com o acréscimo dos deveres decorrentes do teletrabalho às tarefas domésticas e de cuidado que sempre lhes foram atribuídas e isso não deve ser ignorado pelos empregadores e pela sociedade.
O que se busca neste horizonte de receios e incertezas é sororidade e acolhimento para que as trabalhadoras possam conciliar o exercício de seus ofícios com a maternagem e, dessa forma, ter equilíbrio para superar todos os desafios que o atual cenário impõe, com a construção de uma sociedade em que o cuidado constitua um encargo coletivo.
[1] Nesse sentido destacamos a disposição do Estatuto da Criança e do Adolescente que estabelece, em seu art. 4º, que “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. A responsabilidade pela criação das nossas crianças, portanto, é da família, da sociedade, do Estado e, porque não dizer explicitamente, dos empregadores e das empresas.
[2] Sobre essas questões vale a leitura dos textos de Tayná Leite publicados em https://azmina.com.br/colunas/coronavirus-mostra-que-trabalhar-de-casa-com-filhos-nao-e-um-sonho/ e https://azmina.com.br/colunas/quem-cuida-de-quem-cuida-em-tempos-de-coronavirus/. Acesso em 19 abr. 2020.
Autoras: Maria Vitória Costaldello Ferreira – Advogada. Mestre em Direito pela UFPR. Mãe do Francisco, de 1 ano.
Priscilla Tiemi Mitiura Tsubouchi – Advogada. Especialista em Direito do Trabalho. Mãe do Théo de 5 anos, do Enzo, de 3 e do Dan, de 1.
Texto cedido pelas autoras e publicado originalmente em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-maternidade-e-o-trabalho-em-tempos-de-isolamento-social-novo-tipo-de-puerperio-08052020