A justiça é cega 

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Todos em pé! A autoridade judiciária, o Excelentíssimo Doutor Chimpanzé, está no recinto. Ele entra de salto alto, usa peruca loira cacheada, cílios postiços, está de camisola de cetim com bolinhas cor-de-rosa. 

Chega ao centro da mesa e me olha de cima a baixo de sua poltrona reclinável confortável de couro legítimo. Confere os presentes e expira a fumaça de mais uma tragada da cigarrilha dourada que tem à boca na minha direção. 

Bate o martelo exatamente sobre onde está o pacote de miojo que serviu de prova para a minha prisão em flagrante, transformando o macarrão que eu daria pro meu menino em migalhas.

 Minha mão está tremendo sobre a bíblia, jura dizer a verdade, nada mais do que a verdade, a verdade sem piedade. Juro. O Chimpanzé cerra os olhos, e os pelos se eriçam quando toca a corneta que antecede o hino nacional. 

Eu assisto calada, com medo de dizer a verdade, toda a verdade, sem piedade e de sair da cadeira de tecido onde mal cabe meu traseiro e ir direto para a cadeira elétrica. 

Na minha mente, o carrossel de imagens desde a hora em que entrei no mercado, ajeitei o pacote de miojo sabor frango caipira dentro do casaco, assobiei reconvexo no tom de caetano para disfarçar, mas logo apareceu um senhor de dois metros assoprando um apito nos meus ouvidos. 

Ele mesmo me levou pelas orelhas para uma sala apertada e me cobriu de dedos na cara. E de outras coisas na cara. De lá, cinco policiais armados me escoltaram até a Justiça, lugar sagrado onde os homens devem pagar por seus crimes. 

O hino toca e os jurados estão em pé segurando os corações, as mãos espalmadas sobre o peito. Não seguram a emoção, entretanto. Eu seguro o cu, tento, está difícil. 

O juiz ajeita a peruca, retoca o batom vermelho e cruza as pernas, e a plateia acompanha faminta o movimento, com olhos de Michael Douglas para Sharon Stone. Lágrimas esguicham de todos os meus olhos e o aguaceiro me impede de distinguir o meirinho que recém segurou a bíblia para minha jura solene, mas que agora está roncando, recostado na parede oposta.

 A estenotipista está aparafusada no piso, não dá um pio, nunca deu. A água do meu choro acabou de atingir o parquet tigrado, logo abaixo da mesa do Exmo. Chimpanzé, ele não viu. A mesa dele está a oito degraus acima da minha cadeira minguada. Silêncio no tribunal, o meirinho fala grosso e cospe, voz de recém-acordado. 

O Chimpanzé pisca sensualmente os cílios alongados e sorri para a plateia, mostrando quem manda na bodega. Eu penso que cílios postiços cheiram à falsidade ideológica, mas não digo. Seguro o ar, hiperventilo, tudo junto, meu coração bate na boca. 

E o júri ainda em pé aponta o dedo em riste contra mim, um dedo só, todos eles decidem. Culpada! Não tive defesa, não analisaram minhas provas, minha ficha policial, nem ouviram as testemunhas que eu não pude arrolar. 

Tenho residência fixa, era só um miojo… o meirinho tapa minha boca. Eu me atiro no chão e eles zombam do cheiro de mijo velho. 

O cheiro está impregnado no banco dos réus, não é meu, não há tempo de explicar, a estenotipista não anota, porque isso não basta para recurso de apelação. No caso de crime contra o patrimônio não cabe pedido de anulação. Eu bebo meu choro, com a boca e o moral colados no parquet. 

O Dr. Chimpanzé começa a pular sobre a mesa fazendo aqueles movimentos com braços e pernas frenéticos como quando um macaco selvagem está prestes a devorar um cacho de bananas inteiro, com casca e tudo. Os presentes aplaudem, justiça seja feita.

Por Sabrina Dalbelo – @sabrinadalbelo

Revisão: Gisele Sertão

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