Maria mãe

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Se viu sentada no vaso sanitário no meio de uma quinta-feira pálida segurando a tirinha que anunciava sem alarde a gravidez. Trancada no menor cômodo da casa, leu e releu o rótulo do produto sem processar o que estava escrito; parecia que precisava ser alfabetizada de novo pois as letras se transformaram em desenhos sem sentido. Ali ficou por sete demorados minutos ouvindo seus batimentos acelerados. 

Sozinha em casa, sem possibilidades de encontrar ninguém, ficou indecisa se comemorava ou entrava em pânico. Seria bom ter um par de olhos por perto para dividir a dúvida. Deu um giro pela casa vazia, roeu as unhas, deitou-se no sofá encarando o teto branco gelo e mesmo assim se sentia inquieta. 

O marido chegou três longas horas depois daquele xixi. Enquanto ele fazia o ritual diário de higienização de máscaras, sapatos e roupas, ela ficou ali, zanzando pela sala sem saber como introduzir o assunto. 

Foi no meio da sopa de legumes que deu a notícia sem cerimônia, como se pedisse para passar o pote de sal. A informação foi recebida com espanto e amor. Comemoraram do jeito deles, com um carinho sutil. Se sentiu feliz como em um dia de sol quente na beira do mar com os pés enterrados na areia úmida. 

A gestação toda se passou ali, embrulhada na casa, com a rotina do isolamento social, as reuniões online e o medo do vírus que se espalhava pelas ruas. A barriga cresceu dentro dos enquadramentos possíveis do celular. Um dia não coube mais dentro da tela. De uma forma agressiva e assustadora foi parar em um centro cirúrgico com luz branca e muitos pares de olhos em sua direção. Não teve glamour nem afeto. Não chorou nem sorriu. Só esteve lá, o corpo presente, mas a alma não se sabe até hoje onde estava. Vinte e dois minutos depois o choro veio, não dela, mas daquele pequeno corpo melecado. O menino nasceu forte e saudável, embora miúdo. 

Passaram os dias sendo apenas os três, a santíssima trindade. Sem visitas, o que era um alívio naquele começo desorientado. As horas pareciam não passar. Ela carregava o corpinho daquele estranho junto ao seu o tempo todo, sem descanso. Iam se conhecendo aos poucos. Bem aos poucos.

Foi então que ela iniciou a trajetória da sua vida solitária. 
Ela, que nunca foi dada a encontros sociais, se via cada vez mais triste e mais só. Sem ninguém por perto para dividir o peso. Sem ninguém para compartilhar o choro. Sem sua mãe para preparar o jantar ou ninar o bebê proporcionando um banho tranquilo por cerca de treze minutos sem interrupções. Sem uma amiga para validar suas neuras e garantir que tudo vai ficar bem. Sem a irmã para a distrair falando sobre absolutamente qualquer assunto com empolgação e sem pausas. Sem a vizinha grisalha ensinando simpatias e orações. Ninguém. E apesar disso, não conseguia nunca estar sozinha. Ficou íntima dessa solidão em dupla, misteriosa e calada. 

Ouviu dizer que a própria maternidade já colocava a mulher em situação de solidão, mas com ela parecia pior. Ela passava as tardes falando sozinha com um bebê que pouco reage, e à noite, com o marido, parecia continuar sem interlocutor, falando sem ser ouvida e recebendo como resposta breves interjeições. 

A moça desbotada já não tinha vontade nem de olhar pela janela. Já tinha decorado o que havia do lado de fora, preenchendo a moldura da vidraça. A paisagem agora parecia de mentira, como cena de novela, com pessoas passeando ensolaradas pelo calçadão que acompanha o mar, disfarçando a loucura e a preguiça. Enquanto isso ela se voltava para dentro e seguia hipnotizada pelo bebê e pelo cansaço. 

Foi então que fez da casa um cenário. Brincou com personagens, inventou canções como se estivesse dentro de uma peça de teatro musical. Improvisou figurinos e criou histórias, distraindo o bebê e fingindo para si mesma que era tudo ficção. 

Ela estava interpretando o papel mais verdadeiro e exaustivo da sua vida. A mãeatriz sem contorno, sem foco, sem cor. Encarou o guarda-roupa, respirou fundo e tomou coragem para procurar o vestido azul celeste. “Todo amassado, essa desgraça!”, reclamou sozinha. Podia colocar o verde musgo, que apesar de realçar suas olheiras denunciando as noites mal dormidas, tem um tecido mágico que nunca amassa. Mas ela queria o vestido de ave-maria. 

Ficou sentada no chão daquele quarto-cenário, pernas cruzadas e uma porção de roupas espalhadas se rebelando por terem ficado tanto tempo sufocadas no armário. De novo, ela vestiu aquele traje que já conhecia, que tem cara de figurino porque a faz se comportar de outro jeito: uma personagem santa e pura. Ela fica linda no vestido cor de céu, com a boca de morango e o bebê a tiracolo. Só o cabelo revelava a desordem interna da personagem. Ou da atriz. Ou da mãe. Cabeleira revolta, como ondas de mar bravo. Mas ela estava linda, cheia de graça, combinando muito com seu par. A imagem santificada da mulher de azul com a criança nos braços. 

Fez cena na frente do espelho para seu novo eu e descobriu no seu duplo uns fios de cabelos brancos e uns traços no rosto que antes não estavam ali. Percebeu também uns pensamentos que deveria evitar. Brincou de faz de conta, carregando o bebê pra lá e pra cá. Faz de conta que é só um teatro, que é tudo invenção. Faz de conta que tem superpoderes, que não precisa comer, nem dormir, nem trepar. 

Faz de conta que não tem filho. Imaginou uma cena noturna, o cenário era um bar, tinha um desconhecido charmoso, uns drinks, uma música. Não existe filho na cena, nunca existiu. Ou existiu um dia e foi levado por um estranho no meio da feira livre numa tarde de agosto. Então, ela podia ser sozinha de novo. Podia sair livre, sem máscara, sem os peitos vazando leite. Uma cena solo, um monólogo, um solilóquio. Dona do tempo, dona de si. Uma cena livre, um improviso. Ou o que ela quisesse. 

A mãe-atriz dançou descalça, esvoaçante e imaculada, com seu balé desconjuntado sem ritmo nem postura. Sem o bebê no colo, seus braços não sabiam se mexer, brincou então com o vazio da ausência do corpinho frágil, com um pouco de dor e de alívio. Repetiu falas decoradas de personagens conhecidas, atuou gargalhando, fez de conta que tinha charme, rebolou olhando para trás, e quase esqueceu que saiu alguém da sua barriga. Mas não dava para esquecer. 

O choro cresceu do outro lado da porta e ela correu para o berço, já suada, cabelos grudados na nuca. Voltou para si. Ficou nublada de novo. Choveu. O bebê continuava ali; ele continuava existindo. Não, não foi raptado. Três batidinhas na madeira. Mãe não pode pensar essas coisas. Tentou acalmar a cria, sacudiu, retomando a coreografia solo que tinha inventado minutos antes, mas percebeu que em dupla não funcionava. Cantarolou impaciente alguma coisa, que tampouco teve efeito. Suspirou. Respirou fundo três vezes para se acalmar e se concentrar, como se fosse entrar em cena. 

Fingiu o semblante sereno. Se colocou na posição e ajeitou o corpinho do bebê apoiando nas suas ancas. Formou a imagem sagrada, aquela já conhecida, o contorno da mãe Maria com seu menino Jesus. Só ela sabia o inferno que era interpretar a mãe perfeita.  


Autora: Sou Mariela, mãe de Cora, uma bebê de quase 4 meses. Instagram: @marielalamberti.


Este texto foi revisado por Luiza Gandini

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