A mãe do adolescente neurodivergente e o pássaro de barriga amarela

Foto Perfil Paula Mazulquim 768x1024

Levantei às seis da manhã e, ainda com o pijama e as pantufas, segui meu ritual matinal. Desci as escadas, tirei o lixo e coloquei a água do café para esquentar. Continuei minha leitura de A filha perdida de Elena Ferrante enquanto o aroma inebriante do café abraçava minhas ideias e invadia minha casa.

A sincronia perfeita entre meus pensamentos, o aroma do café e o canto do pássaro de barriga amarela, foi interrompida uma hora depois pela preocupação encoberta de angústia: “‘será que hoje meu filho adolescente neurodivergente será capaz de fazer o que outros filhos neurotípicos fazem todas as manhãs no automático: levantar da cama, vestir o uniforme e ir para a escola?’”

Ainda estava sozinha com as tensões que enrijeciam meu pescoço e aceleravam meus batimentos cardíacos, quando o barulho do chuveiro vinha do andar de cima. Não devia ser ele, pensei. Eu estava certa. Não era ele. Era meu parceiro na invisível jornada da maternidade atípica. Olhei para o relógio pela enésima vez e o ponteiro ainda estava lá, no mesmo lugar – dez para as sete da manhã.

Fechei a garrafa de café e, intrigada pelo desenho que a borra fazia no filtro, pensei: – seria o mesmo desenho de ontem? Não era, nada nunca é o mesmo de ontem e até a borra do café parecia me alertar para a impermanência de tudo! Exceto as angústias da mãe de adolescente neurodivergente. Essas permaneciam e resistiam como o  imponente mandacaru que eu avistava da janela da sala de estar.

Encarei os azulejos cinza claro da parede da cozinha novamente em busca do senhor do tempo – o relógio –  e pude constatar que apenas quatro minutos haviam passado.  Enquanto isso, no tempo e universo paralelos nos quais a minha mente pairava, os minutos viraram horas. Lembrei que faltavam ovos (como faria  o omelete do jantar?), que precisava comprar a bucha de lavar a louça que acumulava na pia,  marcar o exame que a dentista pediu, terminar o Imposto de Renda e levar minha mãe ao exame de endoscopia. Foi quando me dei conta que o pássaro de barriga amarela e cabeça preta cantou mais uma vez (ou talvez ele nunca tivesse parado de cantar?) do alto da árvore que dá figo no meu quintal . A bela ave parecia querer me lembrar que apesar da implacável passagem do tempo e, especialmente por conta dela, eu precisava controlar a velocidade da minha mente.  Foquei em sua bela barriga amarela e seu canto potente e percebi que ele queria me contar (ou seria cantar?) que o melhor lugar era o aqui e o agora e que, enquanto nos últimos 20 anos estive ocupada demais planejando sempre os próximos 5 anos da minha vida, o tempo passou. Pisquei e cinquentei. De repente Cinquenta!

Olhei para o relógio que  marcava 7 horas .Um segundo depois encarei os degraus da escada de madeira e subi na certeza de que teria que me doar novamente. Entre nós havia uma porta, a porta do quarto de dormir do meu filho que não havia sido aberta, mais uma vez, sem a minha interferência.  Aconteceu de novo e não era novo. Aquela porta havia exigido de mim, todas as manhãs dos últimos dois anos, uma força descomunal que nem eu sabia que tinha, ou melhor, até sabia que tinha mas não planejava usá-la todas as manhãs ininterruptamente. E o que nos contaram sobre sermos mães de nossos filhos adolescentes? Quase nada. E adolescentes neurodivergentes? Menos ainda.

Corta para o ronco do motor do Chevrolet prata acelerando. Era meu parceiro de vida e de parentalidade atípica que deixava a casa em direção a escola. Exatos 41 minutos  se passaram do momento em que eu subi as escadas pela primeira vez aquela manhã até o ronco daquele motor e o olhar de cumplicidade que trocamos ao pensarmos juntos “conseguimos mais um dia”’. Eu e meu parceiro de jornada não precisávamos de palavras para nos consolarmos frente às angústias e dores da parentalidade atípica. Era sempre nesses momentos que, do alto do meu privilégio de mulher cis branca, eu sofria só de pensar nas centenas de milhares de mães solo, pretas e de periferia encarando a jornada da maternidade atipica sem nenhuma rede de apoio. É  por isso que escrevo. É por elas também.

Sentei-me à mesa do café e voltei a minha atenção novamente ao canto do pássaro de barriga amarela na tentativa de diminuir a tensão no meu pescoço, a  parte do meu corpo que mais gritava toda vez que eu me via diante da impotência e pequenez a que, não raras vezes, somos reduzidas como mães de adolescentes atípicos que crescem em um mundo majoritariamente típico.

Quando olhei para o relógio pela última vez, antes de parar de escrever, eram 8 horas da manhã. Duas horas se passaram da primeira face de um dia só, que estava mais para sombra do que para sol, quando o som da maquita da obra ao lado me lembrava que precisava tocar a minha própria obra – afinal de contas a louça acumulava na pia e o almoço precisava ser feito –  até que o senhor do tempo marcasse 4 horas da tarde e fosse hora da mãe do adolescente atípico iniciar a segunda face de um dia só que costumava  ser mais sol do que sombra. Como sei? Um passarinho de barriga amarela me contou.

Por Paula Mazulquim – @leiakpaula

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