Foi a minha primeira vez. Eu achava que ia doer, mas eu não senti nada na hora. Foi tudo muito rápido. Nada de preliminares. Cheguei, tirei a roupa e deitei. No sábado anterior achava que ia rolar, mas não era a hora. Sabia, de qualquer forma, que o momento estava próximo.
Queria estar preparada. Comi pouco, um punhado de castanhas-do-pará, um pedaço de banana. Uma mordida de chocolate. Separei as melhores calcinhas e sutiãs da gaveta. Lembrei que era importante estar depilada.
Gilete em punho, fiz o meu melhor para ficar tudo bem lisinho. Contorno, Retorno. Não queria que um pelo esquecido estragasse tudo. Lavei o cabelo durante horas, cortei as unhas das mãos, mas desisti de tentar dar um jeito nos pés. Provavelmente eles passariam despercebidos.
Passei o domingo jogada no sofá, com o celular por perto. Eu poderia ligar a qualquer momento e marcar uma hora. Mas queria que acontecesse. Eu não tinha tanta pressa. Gostava da dor de barriga da espera. É muito gostoso idealizar uma sensação. Como seria a intensidade do toque, o pele a pele, a sucção.
Ia pro banheiro escondida treinar como iria gemer na hora h. Não queria parecer vulgar, nem escandalosa. A questão é sentir que eu poderia expressar tudo. Respirar, suspirar. Sentir os músculos da minha vagina em ação. O gosto salgado do suor. Queria poder gritar, movimentar com liberdade o meu quadril, na busca do encaixe perfeito. Quem sabe dançar para sentir as ancas em movimento. Estava disposta a tudo.
Pensei até em fazer uma lavagem no ânus. Mas achei desnecessário. Se rolasse fezes, achava que ele já estaria acostumado com isso. Na segunda pela manhã percebi que a espera ia acabar. Estava usando batom vermelho. Meu corpo implorava. E aconteceu mesmo. Ele enfiou dois dedos na minha vagina. Mordi os lábios. Tirei a roupa e deitei numa mesa metálica. Ele me cortou. Foi indolor. Tentei sorrir, chorar, mas estava anestesiada.
Depois que tudo acabou já era uma terça-feira cinza. Eu mal podia me levantar. Um gosto metálico na boca. Quando erguia o corpo da cama, tudo ficava escuro, embaçado. Uns tremores faziam meus dentes quicarem na boca.
Quando finalmente consegui chegar no banheiro para me lavar, senti uma posta de sangue cair no chão. A água tocava na pele, mas não dava pra saber se eu estava limpa. O corte inflamado e purulento impedia que me abaixasse pra ver o estrago. Um peso morto nas pernas. Um buraco para sempre.
Criaram centros para extração de fetos. Lá a gente deita, abre as pernas e enfiam a mão profundamente, até descer uma lágrima pesada do seu olho. Não tem dilatação. Quadril estreito. Trabalho de parto demorado. O feto vai entrar em sofrimento. Temos que extrair o feto.
Subi para a sala de extração carregada numa cadeira de rodas. Eu podia andar. Me levantei, tirei as minhas roupas. Coloquei o avental com abertura na vagina. Eu estava lindamente maquiada. Tirei meus brincos. Subi na chapa metálica.
As contrações aumentaram muito. Quem sabe eu não teria o meu bebê antes de me rasgarem? Eu faria o meu parto. Eu sentiria dores tão intensas que me dariam forças para trazer o meu filho ao mundo.
Recebi uma agulhada fina nas costas e, em segundos, meu corpo ficou inerte. Um monte de carne sendo cortada ao som de serra elétrica. Cheiro de queimado.
Enfermeiras riam. Médicos riam. Tiraram um bebê ensanguentado. Correria. Choro. Me mostraram um bebê. Eu sorri pra uma foto junto com o meu marido. Todos saíram. Eu fiquei só. Silêncio.
Eu só conseguia sentir o movimento involutário dos meus olhos, piscando para segurar as lágrimas, o resto era tudo isopor. Estava maquiada. Estava linda.
Tentaram colocar o meu filho no peito. Ele sentiu que ali não tinha nada. Saíram, mesmo com chuva, para comprar vidrinho com amor sintético. Ocitocina artificial. Na esperança de que saísse alguma gota de leite de mim. Um corpo inerte, rasgado, costurado tinha que emanar o fluído da vida.
Choramos a noite inteira. O único líquido possível até o sol da quarta-feira.
Nos vestimos. O cheiro de éter sumiu com a borrifada de perfume. Juntei um resto de sorriso para a foto na escadaria. Assinei o consentimento.
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Autora: Thais Fonseca Nunes – Sou mãe do Miguel de 1 ano e 10 meses. Sempre amei livros e literatura, mas foi com a maternidade que a minha escrita se tornou mais pulsante e necessária. Redatora e revisora de conteúdos digitais, trabalho também com empreendedorismo criativo e storytelling. Escrevo sobre maternidade e feminismo no Medium @thaisfonsecanunes e no meu instagram @thaisinhafnunes