Uma reflexão sobre minha identidade étnica

Uma reflexão sobre minha identidade étnica

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Dia 18 de junho é o Dia do Imigrante Japonês, nesse último que passou comemoramos os 110 anos da chegada dos primeiros imigrantes. Eu li muitos posts de amigos relatando um pouco da vivência deles ou de familiares. Me emocionei muito lendo alguns e me peguei pensando sobre todos os sentimentos agridoces que essa ancestralidade me trouxe nessas quase 3 décadas de vida.

Eu sou haafu (expressão japonesa para “metade”, significando mestiço). Olhando pra mim é óbvio que eu não sou branca, mas ainda assim as pessoas enxergam só a cor da pele e desconsideram os fenótipos mais óbvios: eu tenho olhos puxados, meu cabelo é mais preto que preto, meu rosto é redondo, meu nariz é achatado e minha estatura é baixa.

O processo de (re?)descobrimento da minha identidade começou recentemente, graças a um grupo de mulheres incríveis e inspiradoras. Graças a esse grupo eu comecei a enxergar micro agressões que eu sofro quase que diariamente desde que me entendo por gente. Antes eu via como preconceito sem graça e não como o que realmente é.

É um tanto bizarro olhar em retrospecto e lembrar quantas vezes eu fui discriminada por ter uma aparência diferente, quantas perguntas esdrúxulas eu tive que responder por causa da minha ascendência, quantas piadas repetidas eu ri de nervoso por simples cansaço e preguiça de responder. A que mais me irrita até hoje, de longe, é quando perguntam sobre a geração: se eu sou nissei (segunda geração), sansei (terceira) ou “não sei”. Eu sou yonsei (quarta) e por causa da sonoridade às vezes as pessoas acham que eu estou participando da piada sem graça. Pode parecer bobo, e eu realmente não dava importância das primeiras duas, três ou vinte vezes que eu ouvi. Só de imaginar as piadas que a minha filha ouvirá quando responder que é da quinta geração já sinto calafrios (5 em japonês é “go”, não preciso nem explicar).

Eu cresci em uma cidadezinha onde minha mãe, meus irmãos e eu éramos os únicos com ascendência japonesa (na verdade tinha uma outra família de três pessoas, a filha do casal era a melhor amiga da minha prima, mas eles se mudaram para o Japão quando minha irmã ainda era bebê), então era normal que houvesse algum estranhamento. Mas ainda assim era desconfortável ser chamada pelas poucas palavras japonesas que as pessoas conheciam por causa da música do É o Tchan (olha que divertido!) ou quando diziam que eu parecia com o personagem X sendo que a única semelhança existente eram (o que?) os olhos puxados (e mesmo assim nem eram iguais).

Com 10 anos nos mudamos para uma cidade um pouco maior, colônia japonesa, e foi só por volta dos 14 ou 15 anos que eu comecei a me envolver de fato com a cultura, frequentando o nikkey, indo aos matsuris e dançando bon odori com as amigas. Note: as amigas eram todas não-descendentes e isso em nenhum momento foi um problema visto que elas eram muito bem vindas em todos os eventos e os ditiyans e batiyans ficavam felicíssimos com a presença delas nos motiori do kaikan. Talvez tivesse sido um problema se elas fossem dessas que gostam de falar que são mais japonesas que muito japonês, mas felizmente não era o caso. Só com 15 anos eu conheci o bairro da Liberdade, vindo de excursão com o kaikan junto com a minha ba. Com 17 me mudei pra São Paulo pra fazer faculdade (que tranquei no fim do mesmo ano) e estava lá todo sábado, fazendo aula de japonês.

Na época dos matsuris eu brincava (meio que falando sério) sobre um dia participar do Miss Nikkey, mas não botava muita fé que um dia fosse realmente. Não só fui como peguei gosto e participei não de um, mas de quatro concursos. Claro que não ganhei nenhum, mas foi uma experiência muito importante pra mim: primeiro pelas amizades que fiz e segundo pelo o que isso fez com a minha auto-estima.

Vocês entendem, eu cresci tendo como “padrão de beleza” o mesmo que a maioria tem: o branco. Me lembro bem de um episódio na pré-escola em que cada aluno recebeu um rosto (de menino ou menina) para pintar. Os desenhos foram pendurados na parede da escola e era fácil identificar o meu de longe: a única menina com cabelo preto. Todas as outras haviam tido os cabelos pintados de amarelo (o que é engraçado, porque não havia nenhuma criança loira na classe).

Apesar de todo meu esforço, mesmo conscientemente sabendo que meu valor não está associado a minha aparência, eu não conseguia me desgarrar da sensação de inadequação. Acho que qualquer mulher, salvo raras e sortudas exceções, consegue entender a sensação, simplesmente porque é essa a forma que somos criadas. Independente do que digam sobre esses concursos serem “anti-feministas” (eu até já fui acusada de fazer as pessoas se sentirem um lixo por tentar me sentir melhor comigo mesma), eu não consigo nem por um momento me arrepender de ter participado.

Nunca senti a “rivalidade feminina” durante todo o período de ensaios ou mesmo durante o concurso, nem me senti inferior por não ser uma das vencedoras. Na verdade, eu me sinto muito feliz e honrada por ter tido a oportunidade de conhecer tantas meninas maravilhosas (não só por fora).

Enfim, divaguei. É muito difícil me conter quando falo dessas lembranças do concurso, pois são muito queridas para mim. Voltando ao assunto.

Uma vez, há alguns anos atrás, me perguntaram em um desses sites de perguntas anônimas se eu sofria racismo por ser japonesa e eu respondi enfaticamente que não: imagina! Os estereótipos japoneses são, em sua maioria, muito positivos e eu não tinha porque achar ruim.

Mas acontece que eu tenho sim porque quando colocam a gente numa caixinha apertada onde não há espaço para ser você mesmo (sem ser repreendida) há algo de muito errado sim. Qual o problema de acharem que eu sou uma pessoa inteligente, trabalhadora, séria e dedicada (e no caso das mulheres, doce e delicada)?

O problema é que enquanto somos vistos como massa nossa individualidade nos é negada. Nossos êxitos e esforços não são reconhecidos, nossas falhas e fracassos são ainda mais cruelmente apontados porque quando a gente faz algo bem, é óbvio, “é porque você é asiática” (dane-se se eu passei horas ou até dias quebrando a cabeça, colher os frutos disso é uma consequência genética e não do meu esforço!).

Mas se eu não sou boa em matemática, se não tiro boas notas, se não sou organizada, se não sou magra (!): eu estou envergonhando a raça, por exemplo. Fora a expectativa de uma personalidade submissa. Mas as pessoas nunca colocarão nesses termos, claro. Às vezes nem elas mesmas percebem que estão colocando essas expectativas baseadas unicamente na aparência de alguém, talvez se fosse algo consciente elas se envergonhariam.

Estamos aqui há 110 anos e ainda somos vistos como estrangeiros. 110 anos e ainda sou questionada se eu falo japonês, se já fui pro Japão, se meu marido também é descendente (e depois do susto ainda perguntam o que minha família acha disso), se eu conheço a família tal (como se a gente fosse só uma meia dúzia espalhada por aí e não a maior população de descendentes fora do Japão).

Eu sei, eu sei: as pessoas querem ser simpáticas, querem demonstrar interesse com o pouco que conhecem. Isso não quer dizer que seja menos incômodo ou ofensivo, mesmo que elas não percebam que estão julgando a gente por estereótipos que nem minha vó seguia mais (embora ela tenha casado com filho de japoneses ela recusou todos os pretendentes que meu bisavô escolheu pra ela e conseguiu casar com meu avô, de quem ela gostava, e nenhum dos filhos deles casou com descendente).

Elas não fazem por mal. Bem, ao menos a maioria não faz. Teve um episódio lamentável em que uma senhora no metrô ficou questionando sobre minha ascendência e teve a petulância de dizer que por ser “misturada” eu não poderia dizer que era yonsei, que só quem tem o sangue “puro” pode usar da nomenclatura. Essa senhora não era (nem de longe) descendente, mas disse que tinha muitos amigos que são. Não obstante, ainda achou ok falar que minha filha estava incomodada no sling. Incomodada estava eu com esse tanto de baboseira que tive que ouvir.

Já aconteceu também de várias pessoas virem me falar que “adorariam ser japonesas” porque acham lindo. Imagino que a intenção fosse elogiar, né? Também imagino que vocês gostariam só de ter a aparência que julgam bonita ou quem sabe fazer parte da comunidade desde cedo, já que tem interesse pela cultura. Não acho que realmente gostariam de passar pelas mesmas coisas, como o bullying que eu sofri quando era criança ou as micro agressões quase diárias que eu citei. Novamente, eu acabo relevando porque sei que as pessoas não fazem por mal… Mas até quando, sabe? Um pouco de educação (no sentido de se informar mesmo) não faz mal a ninguém. Mas como sempre, quando apontados os erros ou o porquê de uma coisa ou outra ser na verdade ofensiva, as pessoas tendem a ficar elas mesmas ofendidas e na defensiva.

Em todas as vezes que leio um relato de alguma colega asiática sobre questões que as incomodam, pelo menos 99% das vezes, acabo me identificando e isso faz com que eu veja o quanto, mesmo sendo indivíduos únicos e singulares, ainda temos muito em comum. Entender essas particularidades foi vital para que eu visse as coisas com a devida seriedade com que elas merecem ser tratadas. Ver que eu não estou sozinha com certeza me dá mais força. E embora minha ascendência seja sim uma grande parte de quem eu sou, ela não deve nunca me definir nem limitar, pois eu sou muito mais do que uma “mesticinha” ou uma “japinha”. Sou muito mais do que a menina estudiosa, a mocinha quieta e séria: eu sou uma pessoa como vocês e exijo ser tratada como tal.

Gostaria de finalizar o post com alguns esclarecimentos:

– Eu NÃO acho que o racismo sofrido por asiáticos é equiparável ao sofrido por negros ou indígenas, chega a ser indecente sequer pensar em uma comparação do tipo.

– Eu RECONHEÇO os inúmeros privilégios de ser vista como uma minoria modelo, embora isso não me impeça de reconhecer também os “contras” desses mesmos privilégios.

– Eu estou falando da minha experiência pessoal, 1) pode se assemelhar a de muitas outras, assim como 2) pode ser diferente de muitas outras, o que não invalida nem meus sentimentos nem minhas percepções.

Por último, mas não menos importante: eu acho de suma importância ressaltar que sou descendente de imigrantes. Não sou uma imigrante, muito menos uma estrangeira. A percepção de inúmeros fatores culturais é muito diferente para japoneses e descendentes de japoneses vivendo fora do Japão, favor notar. Não adianta dizer que “no Japão eles não ligam” ou “se um japonês de verdade não se ofende, por que os descendentes ficam criando caso?”.

Apenas não. O fato de eu não ser uma estrangeira por si só deveria servir de indicativo pra verem que é diferente, e não simplesmente pra invalidar nossa opinião porque “os japoneses de verdade não se ofendem”. Os japoneses “de verdade” não tem que lidar com as mesmas questões que os que emigraram e seus descendentes. Espero que tenha ficado claro.

Créditos das fotos: Carolina Sakuma

Autora: Ichigo é formada em modae mãe da Erika! Tem um blog chamado “Reinos de Morango

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