Mulheres-mães protagonistas da própria história

A sorte de sobreviver pela metade – dos efeitos da criminalização do aborto

A sorte de sobreviver pela metade – dos efeitos da criminalização do aborto

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Uma semana depois do meu aniversário, eu senti que ia morrer e me encolhi no colo da minha mãe. Eu realmente tive medo de morrer e descobri que não sou nada. E por isso, só por isso, eu preciso falar sobre a criminalização do aborto. Minha avó, eu soube há pouco tempo, abortou. Minha tia-avó, eu soube, abortou. Duas primas minhas, até onde sei, abortaram. Uma tia minha, eu sei, abortou. Minha mãe, eu sei desde pequena, havia feito um aborto e sofrido um aborto espontâneo. E eu, aos 20 anos, pouco antes da minha formatura, abortei.

Da minha avó, pouco sei porque fez, como fez, quando fez. Soube após a morte dela, minha mãe que me contou. Da minha tia-avó, eu soube que foi quando ela já era casada e tinha 3 filhos que não eram mais crianças, não tinha condições financeiras de ter outra criança. Ela foi para outra cidade abortar e quase morreu no caminho de volta. Minha tia-avó e minha avó eram mulheres pobres.

Minha mãe abortou com 18 anos, acho. Meu pai e ela contavam a idade dos meus “irmãos” na época do meu aniversário. Minha mãe sentiu muita culpa, mas considerava necessário. Ela tinha entrado na faculdade na época, era recém casada e foi o pai dela quem a levou na senhora que fez o aborto. Ela não tinha capacidade de ter a criança. Não tinha. E, graças a isso, sou filha de um casal de classe média não alta (um casal de classe média que só teve filha formada porque a faculdade era na sua pequena cidade, mas que existia vestibular local – não ENEM – e que fez um curso que é reconhecido: só pobres fazem porque os cursos de rico – como direito, medicina e etc – exigem dinheiro para entrar e se manter). Ela se formou, teve uma profissão e me teve. Eu fui planejada e amada. Essas histórias foram compartilhadas comigo quando eu engravidei e chorei pelo aborto para minha mãe. Não queria, não tinha como. Eu não tinha emprego e nem o pai da criança. Eu não queria ser mãe e fui bem avisada: não haveria suporte por parte dos meus pais. E eu entrei em pânico, eu não queria aquilo para mim. O pai do feto em questão disse que aceitava minha decisão e correu atrás de emprego para poder ser pai. Ele aceitou a decisão que tomei e hoje em dia diz que foi um sacrifício que foi acertado. Um sacrifício meu que ele reconhece enquanto meu. Mas nada do que relatei acima é importante.

O importante vem a seguir: existe uma rede. As pessoas não falam dela, mas ela existe. São as amigas, são outras mulheres que quando veem o desespero da outra indicam alguém, uma loja de ervas, uma pessoa que faça. Existe compaixão feminina nessa hora. Vem de quem menos se espera. Foi graças a rede que eu e minha mãe achamos uma senhora de quase 90 anos que um dia foi enfermeira. Eu tinha medo de remédios porque se o remédio dá errado tu terminas com uma criança com má formação e um problema dobrado. Essa senhora me cobrou 600 reais e disse que fazia para nos ajudar, ajudar as mulheres porque elas tinham que escolher (tem mulher que não tem como ter filho por causa de dinheiro outras porque não quer ter). Ela ensinou minha mãe a aplicar injeções que seriam necessárias depois e fez a indução do aborto por sonda. Foram 3 dias indo à casa dela até que um dia o feto desceu. Era uma coisa minúscula, menor que um morango. Eu tinha, pelas contas dela, por volta de 10-12 semanas. Não tinha nada de humano. Mesmo assim, ela me mostrou o feto. E até hoje eu lembro disso, como a vida de várias se perde por causa de algo que não é ainda humano.

Durante o procedimento eu senti dor. Ela fez com materiais de aço inox esterilizados, mas os cães dela latiam na volta. Ela pediu para que eu não fizesse barulho porque haviam os vizinhos (eles podiam denunciar) e isso era um problema. Doeu muito, mas eu não podia gritar. No Brasil quem provoca o aborto em alguém pode cumprir 8 anos de cadeia e a mulher que aborta pode cumprir de 3 a 5 anos. Eu olhei o código penal antes de fazer o procedimento, o Google existe para isso.

O feto saiu, mas o sangue não. O sangue simplesmente não descia. Voltamos na senhora, eu não me lembro mais o que ela disse, qual foi a recomendação… Mas fizemos, eu e minha mãe. Ela verificou se não havia outro feto, mas não havia. Quando o sangue desceu… Doeu. Saíram bolas de sangue coagulado. Bolas do tamanho de bolas de tênis. Eu senti frio, eu vomitei, eu passei mal. Eu me enrolei em mim mesma em dor. Até hoje lembro do sangue escorrendo pelo ralo e da dor. Aquele monte de sangue que não parava nunca de descer. Eu embaixo do chuveiro e o sangue correndo como se tivessem me cortado. Filmes de terror tem menos sangue do que aquele que escorreu pelo ralo naquelas horas. Minha mãe me abraçou na cama que eu dormia conforme eu sangrava. Porque teve uma hora que eu não conseguia nem ficar em pé de dor. Mãe… E se eu morrer? Minha mãe me abraçou com mais força. Ela também teve medo que eu morresse porque doía, porque custou o sangue a descer, porque eu era a filha amada dela. Ela me avisou que só ia me deixar na frente do hospital se a coisa piorasse e ia embora porque ela também não queria ser presa. Minha mãe e eu nos abraçamos forte uma na outra porque eu tive medo de morrer e ela teve pânico que talvez a filha dela morresse por conta de uma lei feita por um legislativo composto, em sua maioria, por homens.

Essa lei mata milhares, eu podia ter morrido. Eu não sou rica. Também não sou pobre ou periférica, mas eu não poderia pagar os dez mil reais que ouvi que os médicos cobram e eu tinha medo dos remédios me deixarem com uma criança com má formação.

Hoje, eu sou mãe. O parto normal doeu menos, bem menos. O sangue foi menor. Eu tenho uma filha. E nunca, nunca na vida, eu quero que ela passe pelo que eu passei. Não quero passar pelo que minha mãe passou. De todas as coisas disso… Eu só lembro do primeiro dia que minha mãe me levou e meu pai, como sempre (por força do hábito) me deu um beijo e disse: te diverte, antes que eu saísse. Não, não foi divertido. Nunca vai ser divertido. É a coisa mais difícil, a pior decisão que se pode ter que tomar é essa. Mas para a maioria foi isso que fui fazer: me divertir. Eu não tive medo de morrer, eu não tomei uma decisão difícil… Eu não sofri.

A verdade é: agora esse feto teria 6 anos. Eu não sei como ele seria, mas sei que ele teria nascido sem nem um terço da estrutura, do amor e do carinho que dou à minha filha. Talvez não tivesse nada do amor que reservo à minha filha amada. Ele não teria se divertido, nem eu. Eu não seria feliz, muito menos ele. Ninguém é feliz com uma mãe que não lhe ama. Precisamos sim falar sobre aborto porque as estatísticas estão erradas. Eu sei disso. Eu conheço a história das mulheres da minha família, eu sei pelo que elas passaram. Eu sei pelo que eu passei e não quero que a história se repita com minha filha.

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