Por Maria Stella D Agostini
Esse é o meu relato de parto. Nele caberiam várias versões minhas, para muitos destinos distintos, mas hoje, por hoje, ficarei com a minha versão e, depois, com a para a Rosa. Esse parto começou antes dos 10 dias de fase latente, ou ainda das 39 semanas e 5 dias de gestação. Ele começou em uma tarde de junho, mais precisamente no dia 20 do ano de 2019, quando eu e o Rafael nos conhecemos.
Não é sobre o início do amor, mas, graças aos acontecimentos desse dia, eu resolvi que queria ser mãe, parir alguém. Então, o parto da Rosa começou aí.
Nos anos de relacionamento, fomos nos conhecendo e adquirindo confiança um no outro, da forma de ver a vida até a forma de amar, educar, ensinar e o que ensinar. Vimos um alinhamento filosófico sobre a percepção da vida, que nos permitiu educar o Raul, em casa, com muito afeto, aventura e curiosidade. Desse processo nasceu uma vontade em nós dois, cuja manifestação partiu quase simultaneamente de ambos: um filho nosso, metade ele e metade eu. Pra quando? Quando os compromissos da vida múltipla fossem menos onerosos, traduzindo, quando acabar o doutorado.
Seguimos vivendo com esse plano e desejo na cabeça. Alguns dias parecia irreal, outros parecia uma urgência. Mas crescia uma criança não gerada em nós e, no ano passado, 2023, quando achávamos que tudo estava tranquilo e, apesar dos pesares, em algum eixo de funcionamento, nossa vida virou de ponta-cabeça. Vivemos um fundo do poço mais abismal e disruptivo, que dói falar e lembrar. Achamos que de lá não sairíamos mais, mas, com muito cuidado entre a gente, profissional e um plano, saímos.
O plano: tese no final, somos livres na vida, trabalho remoto, concursos abertos e um mundo enorme. Antes disso? Preparar para gestar. Traçamos uma rota inicial: sair de Brasília, morar em outro lugar. Onde? Não sabíamos, só queríamos uma vida nova, segura e mais tranquila, e Brasília não nos podia proporcionar isso, não mais.
À medida que subíamos de volta para a superfície, conseguíamos respirar e reconhecer o bem que fazíamos um ao outro nessa jornada de retorno do terreno de Hades. Subíamos lado a lado, de mãos dadas e nos maravilhando com as mil possibilidades do caminho. Em um desses últimos degraus, Rafael me trouxe uma proposta disfarçada de convite, na forma de presente: uma viagem pela América do Sul de carro, um mês de estrada entre Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. Eu lembro como se fosse ontem: ele abriu uma planilha, mil abas no navegador e uma lista de mapas, lugares e acomodações, junto de uma garrafa de vinho. Resultado: o caminho mais longo entre Brasília e Pirenópolis.
Viajaríamos agosto inteiro, e viajamos. Tirei o DIU antes de partir, fizemos as malas e saímos sorrateiramente de Brasília, sem despedidas ou avisos para ninguém. Nessa viagem, a gestação começou literalmente, romanticamente e idealmente. Nosso afeto gestava, nossos corpos se agitavam e amavam, e nossas imaginações iam longe nesse processo de viver a experiência de viajar e as novas possibilidades depois de voltar.
No final de agosto, chegamos grávidos, sem saber, em Pirenópolis. Descobrimos essa gestação, que foi curta — 6 semanas — mas intensamente amada. Nos despedimos desse bebê com muita tristeza e resiliência, sabendo que havíamos conhecido nossa primeira experiência, mas que não seria a única.
Aqui cabe um parênteses: nesse ínterim, ficamos em Brasília por quase um mês, para depois seguirmos o roteiro dos concursos, epicentro: BH. Morávamos no sítio e tínhamos mil planos para ele, todos empacados em processos de vida, reformas problemáticas, expectativas e experiências frustradas. Mas era nosso lar. Saímos para o roteiro dos concursos grávidos novamente, sem saber, claro.
Em BH, os primeiros sinais da presença da Rosa chegaram na forma de náusea, vômito e inchaço. Estava enorme e cheia de sede de endorfina. Corria na academia cheia de vontade e vomitava em casa desesperadamente. Nada mais funcionava e fizemos o diagnóstico: grávidíssimos, 7 semanas de gestação.
Os medos de perder, de não conseguir, de tudo o que pudesse dar errado nasceram ali novamente. Voltamos para Brasília e iniciamos o pré-natal. Definimos o destino do nosso lar: grande BH. E para cá rumamos. O apoio inicial e cuidado da Cristina Pinheiro, obstetra, foram essenciais para todo o período de preparação para a gestação e para esse primeiro trimestre. Como isso não é o relato da gestação, o que importa aqui é que esses cuidados se seguiram pela Carolina Flores e a equipe que íamos escolher em janeiro de 2024.
Viramos o ano em BH nauseadamente, como foram as 18 primeiras semanas de gestação. Escolhemos uma doula e uma enfermeira obstétrica: Lena e Adrinez. Lena nos deixou no final de janeiro, e ficamos com a Carol Beckman (tínhamos ficado na dúvida entre as duas) e descobrimos que a Adrinez era uma equipe de enfermeiras, Partejar.
Seguimos o pré-natal (tudo detalhado no relato de gestação feito para a Rosa) e, no meio da 38ª semana, começaram as dores reais. Numa quarta-feira, dia 29 de maio, quase aniversário do Rafael, os pródromos iniciaram e começamos a pensar que a Rosa chegaria muito cedo. Resultado: ansiedade do pai e desespero da mãe. Eu não estava preparada para que ela nascesse, queria segurar ela nos braços, mas não queria deixar de estar grávida. Estava me preparando para isso havia mais de duas semanas. Calmamente, lidamos com isso e iniciamos os monitoramentos. Nada de contração ritmada, nada de parto. No sábado, uma parte do tampão mucoso saiu no vaso. Resultado: expectativa de proximidade do parto. Contrações contundentes chegaram a cada 3 horas, e os intervalos se reduziram a cada 20-30 minutos, mas sem constância. Fase latente iniciada.
Essa fase parecia não ter fim. Na segunda-feira, examinamos: 1 cm de dilatação e colo afinando, mas com cara de fase latente que não saberíamos se demoraria. Aguardar. Compromissos desmarcados, hiatos crescendo; Rosa não chegava, e a vida não seguia. As dores não deixavam. Chegou, enfim, o tédio da sala de espera chamada fase latente. A orientação recebida era o descanso, o que eu não suportava mais. Entramos na 39ª semana, e no dia seguinte, dores muito fortes, sensação de fraqueza, novo exame. Resultado: 1 cm de dilatação, colo mais fino e mais tampão mucoso saindo. Entramos no final de semana determinados a acelerar essa fase latente. Rosa descia devagar pela pelve, mas descia. Caminhamos, namoramos, comemos tâmaras, pimentas e fizemos muitos exercícios de estímulo de parto. Domingo à tarde, já sem muita expectativa, um aguaceiro repentino: aparentemente, a bolsa estourou. Dilma, nossa enfermeira da equipe Partejar, e Carol, nossa doula, chegaram e examinaram: bebê bem encaixado, descendo, colo afinando, 1 cm de dilatação, mas não foi possível afirmar a ruptura da bolsa.
Frustração pela inconclusão sobre a bolsa e aumento das dores. A noite foi difícil, um sentimento de tédio pelo hiato, a dor aumentando e a ansiedade aparecendo em mim e ressurgindo no pai. Junto a isso, uma sensação de nunca estarmos efetivamente em direção à fase ativa do parto; já estávamos prontos para abraçar e chamegar a Rosa.
Na segunda pela manhã, entre lágrimas de culpa e medo de errar na decisão, e na insatisfação de permanecer latente, decidimos que era hora de induzir o nascimento. Decidido isso, o sangue da dilatação começou a sair. Não íamos voltar atrás; era o momento de ter a Rosa conosco, e seguimos até o fim.
Seguimos para a maternidade no caos matinal da cidade e nos internamos. Testando se a bolsa estava efetivamente rota, mas aparentemente nada. Contrações mais fortes, 2 cm de dilatação e colo quase pronto. Seguimos a indução.
Primeira dose de misoprostol colocada, repouso e esperar. Contrações aumentando e a expectativa de dilatar… 4 horas depois, 2 cm de dilatação, colo pronto. Mais uma dose e descolamento da bolsa.
As contrações nesse momento eram mais ritmadas, doloridas, e o descolamento um tanto desconfortável, mais pelo mexer demais ali do que pela dor em si. Mais 4 horas de espera, agora com contrações muito mais poderosas e fortes. A inquietação tomou conta do corpo, que não via mais na cama um leito, mas uma prisão. Tudo em volta era mais intenso: sons, vozes, luzes, cheiros, e as sensações também. As alegrias pareciam euforias, as preocupações pareciam fobias e as expectativas pareciam manias.
Foram 4 horas intensas que não me deixavam mais na sensação de esperar, de hiato, de latência. Precisava me sentir ali, porque, nesse momento, eu não me sentia em lugar algum. Sentia a Rosa e só. Sentia sua força e quis ouvir música nesse banho no escuro: Selvática. Chorei agradecendo a Rosa pelo tempo da gestação intrauterina. Disse a ela que sei o quanto ela é selvática, poderosa amazona que tem no amor sua força agigantada. Chorei muito sabendo que ali era nossa despedida de um corpo só, uma mulher grávida com sua bebê pronta para ganhar o mundo.
Novo exame: 4 cm de dilatação e um toque suave que revelou uma enxurrada: a bolsa estava rota embaixo, no colo dilatado. Um banho aconteceu ali, lavando as primeiras águas. As dores ficaram muito mais intensas, e uma náusea interminável tomou conta; a boca cheia de água e o corpo em inquietação acelerada. De vez em quando, ouvíamos a Rosa, calmamente descendo, com movimentos suaves e constantes, quase como uma peregrinação para a saída.
Eu convulsionava entre dor e prazer. Sentia a pungência de uma dor que, antes surda, agora falava e urrava, para em seguida ceder a um prazer físico e mental quase orgásmico. O corpo não respondia a comandos racionais, e pedi as águas da banheira. Esperamos enquanto ela enchia, na bola e depois na cama, de quatro apoios. Nada me deixava confortável. Saí da cama para a bola e, finalmente, para a banheira. Ali vivi o momento mais mágico da minha vida até agora, a experiência mais prazerosa e dolorosa que alguém pode sentir. Lá, senti-me forte como um planeta e frágil como uma bolha de sabão.
Não havia posição confortável. As dores crescentes e dilacerantes traziam Rosa para fora de mim, seguidas de um gozo embebido em exaustão física, um orgasmo relaxante e revigorante que não podia durar muito. Eu pedia mais tempo, mas Rosa não me dava.
Quis desistir. Pedi ajuda, declarei-me incapaz. Olhava para as três mulheres, com suas profissões e experiências, e seus olhares brilhantes me encarando. Rafael, com o rosto serenamente preocupado, me olhava vividamente. Todos ali me faziam sentir uma força que eu não reconhecia como minha. Eu olhava para cada uma delas, para ele, e percebia o quanto eles me capacitavam a viver aquele momento. Mesmo duvidando de mim, quando me declarei incapaz, fui interrompida a cada vez pela negação dessa frase. A realidade prática do parto e o que elas viam em mim ali evidenciavam o nascimento de Rosa. Toquei sua cabeça e entendi que não havia como titubear.
Era isso. Aquele era o momento de fazer minha parte para Rosa nascer. Urrei, uivei, puxei o ar com tanta força e gozei. Gozei nos intervalos dos últimos urros, como nunca antes. Sentia Rosa pressionando tudo dentro de mim, suavemente, encaixando-se para baixo enquanto eu alternava entre delírios de dor e prazer, como um compasso bem marcado do improviso melódico do parto.
Senti sua cabeça saindo e me entreguei ao ritmo de expulsão que ela ditava. Relaxe e empurrei, deixando que ela saísse sozinha.
Vi Rafael e Carol F pegando Rosa enquanto Dilma e Carol B cuidavam de mim, radiantes, falando sobre a beleza do que eu havia conseguido, com sorrisos e carinho. Rosa saiu de mim, ainda presa pelo cordão. Nós três, Rafael, Rosa e eu, nos abraçamos. Lembro que, no meio do processo, chegou Polyana, a fotógrafa, com sua sutileza e palavras de apoio, que se somaram ao coro de mulheres que me nutria de autoconhecimento e da força feminina que emanava de todos, inclusive de Rafa.
Após cortar o cordão e levar Rosa para os primeiros cuidados, e quase desmaiar antes de nos separarmos como um só corpo, tudo voou. Carol B sussurrou que eu precisava sair dali e parir a placenta. Carol F me chamava para a cama, enquanto Dilma dizia que eu precisava seguir do parto ao pós-parto. Eu não conseguia raciocinar, não queria me separar de Rosa, nem daquele momento de amor, gozo e paz. Minha tia-mãe entrou para receber Rosa com Rafael.
Precisava seguir para que eu pudesse ser a mãe de Rosa, enfim. Equilibrando-me, fui levada à cama, e, com muito cuidado, as duas Carols e Dilma tiraram minha placenta. Rafael ficou com Rosa, e logo a trouxeram de volta para mim. Mas, por pouco tempo, ele saiu com ela, pois eu ainda precisava de cuidados. Meu corpo estava exausto, e as meninas, junto com a equipe do hospital, cuidavam de mim. Foi o momento do cuidado técnico, médico e racional. Isso me tirou daquele transe e me trouxe para a zona de medo: o que deu errado em tamanha perfeição de emoção?
Minha tia-mãe observava meus cuidados enquanto confiava Rosa a Rafael. Já sóbria, quis entender o que estava acontecendo. Elas me explicavam, e eu sentia tudo jorrar de dentro de mim: água, líquido amniótico, banho, banheira e, por fim, sangue. Enquanto elas garantiam meus acessos, medicações e cuidados, eu me mantinha atenta para dar qualquer sinal que as ajudasse. Descrevi a dor e o jorro que sentia. Elas foram impecáveis, em sincronia e mestras de toda aquela situação.
Hemorragia estancada, medicação aplicada e ponto feito, era hora de completar minha “hora de ouro” com Rosa. Rafael voltou, Rosa veio, e todas as mulheres estavam ali, e, enfim, senti-me mãe. Parida de afeto, de abraços, de cuidados e de Rosa.
Dilma e Carol B me ajudaram a amamentar Rosa pela primeira vez. Foi um portal de teletransporte para aquele momento mágico do parto. Entreguei-me à amamentação, sentindo um prazer enorme que persiste até hoje.
Após conversas e despedidas dessa equipe maravilhosa de mulheres que, em seu poder e profissão, me mostraram uma Stella com uma potência que nunca imaginei, sou grata por ter compartilhado com elas essa felicidade e esses momentos genuinamente fabulosos do nascimento de Rosa.
Olhando para trás, vejo como me apaixonei pelo ato de parir e como isso transformou minha concepção sobre o que é romantizar e o que é realidade. Meu parto não foi estável em nenhum sentido. Mas, mesmo sem previsibilidade ou linearidade, tive um parto de sonhos. De uma criança, uma amazona delirante, uma bebê que é um sonho.
Parir foi lindo e delicioso, sim. E eu sei: há dor, há cansaço, medo e tristeza. Mas, sem dúvidas, parir entre mulheres assim, acompanhada de verdade, é o que garante essa experiência extraordinária. Meu parto foi humano na melhor forma de expressão desse termo. Eu amei.