Aquela criança ainda lia muito pouco
Não tinha o conhecimento da polissemia das palavras
Mas ficara encantada e curiosa.
Como seria um local onde alisavam cabelos?
E por alguns instantes pôs-se a imaginar
Alguém fazendo um carinho, um dengo, um afago
Em seus cabelos.
E continuou pensando, será que meu tipo de cabelo também tem direito?
Ou vão dizer que só os lisos têm?
O meu é crespo. Será que o encaracolado, o Black, trancinhas…
Todos poderiam ser alisados?
Ela foi tomada por centenas de perguntas, que a deixou em órbita,
Elétrica.
Mas como saber? só espiando o que acontecia dentro daquela casa.
Ao olhar
Notou que a janela estava meio aberta, como era pequena demais, subiu
Em uns blocos que encontrou no quintal, para olhar o que desejava.
Com muita dificuldade, percebeu que havia duas mulheres em pé
e duas sentadas, próximo a um fogão acesso, com uns ferros estranhos,
Pareciam uns monstros comedores de cabelos.
E cuspiam fumaça ao serem aplicados nos cabelos.
De uma forma muito violenta aquela criança percebeu
Que o verbo alisar era usado no sentido de tornar liso.
Era essa a função daqueles aparelhos estranhos,
Eles alisavam todos os cabelos que não eram lisos de
Forma violenta, com uma temperatura elevadíssima
A ponto de queimar os fios para deixá-los com aparência de
Lisos.
Aquela criança se sentirá violentada pela ditadura da beleza.
Era só uma questão de tempo, em breve ela também
Passaria por esse processo monstruoso para ser aceita
Sem ser discriminada na sociedade.
Até hoje o verbo alisar em suas memórias de infância tem
O sentido de violentar, mudar, queimar…
Já houve esse tempo em que as pessoas negras, com os cabelos crespos,
Encaracolados…não tinham o direito de usá-los de forma natural,
Coloridos, com penteados diferentes, soltos…
Houve um tempo em que todas as pessoas negras não conheciam
O prazer de usar os seus cabelos soltos, loiros, rosas, azuis, grisalhos…
Hoje elas conquistaram o seu espaço, estão espalhadas pela mundo,
Ocupando os diferentes lugares e cabeças das mais variadas formas,
Inclusive os lisos, mas por opção e não por imposição.
Ah! Ainda há olhares de cesura, repúdio, discriminação…
Como os tempos são outros, hoje há leis para
Reprimi-los.
Autora – Maria das Graças de Oliveira Rocha – @mariadasgracas.rocha.9