O limite do brincar: uma questão de gênero

O limite do brincar: uma questão de gênero

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Por: Marcela Camasmie

Cabe iniciar este texto com uma pergunta importante: o que é brincar? O psicanalista argentino Ricardo Goldenberg nos dá pistas para tentar responder esta questão. Em um depoimento concedido ao documentário Tarja Branca, ele aponta o brincar como uma ação séria, comprometida, levada às últimas consequências. Uma experimentação vivida com entrega. 

Ele faz uma comparação entre o brincar e o trabalho de um ourives: um está na mesma linha que o outro – a linha do brincar. O ourives é um artista que com muita precisão e concentração cria suas peças. A criança brinca e cria seu mundo. 

Perguntei ao meu filho de 3 anos o que é brincar. Ele respondeu sem delongas: “se divertir, ué”. Se considerarmos que brincar é dedicar-se a uma exploração até o seu fim – seja ela qual for – (e divertir-se com isso), e se as possibilidades de vivências e brincadeiras são infinitas, qual o limite do brincar para as crianças em nossa sociedade?

O limite pode resumir-se a uma dicotomia simbólica bem demarcada e conhecida por todos nós: o rosa e o azul. Agarrados a esses extremos há uma série de significados, imposições de comportamento, gostos, valores e interesses. 

Freud defendeu que nossos instintos são limitados pela cultura desde que nascemos. É a cultura que nos orienta e controla. Os responsáveis por disseminar a cultura são inúmeros agentes: a família, a escola, a mídia, etc. 

E em qual contexto cultural estamos inseridos e o que queremos fomentar quando damos uma roupa azul a um menino e não rosa? Ou quando vemos um comercial na televisão direcionado às meninas só com princesas e castelos? 

Primeiro, devemos admitir que vivemos em uma sociedade machista e patriarcal. E a questão que trago é que os brinquedos e as brincadeiras são traços que revelam, difundem e perpetuam esta nossa profunda marca.

Determinamos gostos e interesses de um indivíduo somente pelo órgão sexual. A partir desta premissa, esperamos atributos específicos de cada um dos sexos. Injetamos super-heróis musculosos no imaginário dos nossos meninos. Bonecas, casinhas, forninhos, panelinhas e princesas como principais referências às meninas. 

Fomentamos a ideia de quais sujeitos estão no público e no espaço privado: homens enfrentando a vida, no lado de fora – o espaço público – e as mulheres vivendo no espaço privado. 

Claro que já vemos muitas mudanças e conquistas sociais neste sentido. Porém, acredito que olhar para esta dicotomia na infância ainda é algo a ser trabalhado. Não tenho nada contra a nenhum dos brinquedos e brincadeiras, tenho contra a imposição deles. 

Isto posto, almejamos homens fortes. Provedores. Corajosos, másculos e viris. Mulheres sensíveis, que saibam cuidar da casa, boas esposas, delicadas, comportadas e, acima de tudo: mães. O instinto materno ocidental é uma criação europeia do século XVIII que assombra e persegue a vida das mulheres desde crianças. Não vou me prolongar nesta questão, talvez num próximo texto. 

No entanto, é oportuno enfatizar o quanto esta obrigação coloca a mulher como a única e mais importante responsável pelo cuidado das crianças. E como isso degenera corações e vidas, pela desigualdade, pela culpa, pela sobrecarga, pela falta de reconhecimento do cuidar como um trabalho que pode e deve ser exercido por seres humanos, não somente por mulheres.

Para tanto, podemos convencionar: se é de brincar, é de todos. É livre. Meu filho adora brincar de pintar as unhas. De passar batom. E isso não faz dele nada mais do que ele já é: uma criança que experimenta, sem limitações de gênero. 

Outro dia o porteiro do meu prédio disse ao meu filho que chorava por conta de um pão de queijo: “Homem não chora, menino!”. Eu respondi na mesma hora quase sedenta por justiça: “Chora, sim! Pode chorar, filho!”. Meu filho vai poder chorar. E que todos os homens também possam. 

Queremos que nossos filhos descubram-se livremente nas brincadeiras, que são sua forma de expressão e sua via de acesso para a descoberta do seu mundo interior e o mundo que os cercam. Brincar livre faz uma criança crescer cheia de personalidade, no sentido de descobrir-se. E como é bom estar perto de alguém que pode vivenciar a si mesmo com autonomia. E a orientação sexual afetiva nada tem a ver com esta liberdade.

Que tal começar a mudança na sua casa? A cultura não é estática. Não estamos prontos, estamos sempre nos fazendo. Podemos (e devemos) então, repensar e reconstruir novos sentidos para uma sociedade mais equânime e justa.

Revisão: Juliana Couto – @julianacoutomelo

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