“Foi bom meu tempo com você”

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Tento escrever tirando um dos meus filhos de cima da mesa. Minha caneta dança sem rumo – porém decidida – sobre as folhas sem pautas de um antigo caderno deitado entre os materiais de escola.
Em que nuvem estava minha cabeça quando decidi que, não importa quantas mini-pessoas precisassem de mim a cada 57 segundos, tiraria dela a farofa de palavras e colocaria em frases, depois em texto. Quem sabe alguém me explica.
Minha amiga tem um cachorro idoso que é muito seletivo em relação à sua comida. Ela diz que ele consegue separar o leite após misturado com café. Saudoso Bob, suas habilidades me seriam úteis agora.
O silêncio enfim abre uma curta fresta e por um instante a mãe que eu sou não está na cena. Se abre um pouquinho mais escapo pela porta e não retorno até separar cada pedaço de pensamento.
Um parágrafo, três linhas e o cheiro inventado de bebê alcança meu nariz.
Lembro: tenho 3 filhos, apenas um dorme, o outro, retira todas as 80 folhas restantes de um pacote de lencinhos recém aberto.
É fim de férias e dão à luz o maior lote dos meus fios brancos. A melhor saída desse barco que afunda com certeza é pra dentro de uma panela com açúcar, leite e manteiga.
Faço um caramelo, mas sem lactose porque o grandão está com dor de barriga.
Colei na minha testa o adesivo de “pior decisão pra tomar às 21 horas”. Agora terão que escovar os dentes mais uma vez antes de dormir. As paredes do consultório já não aguentam mais meus olhos revirados de culpa enquanto me certifico de que a dentista não está olhando por trás da máscara.
A chuva de pensamentos abre tantas janelas quanto suficientes pra enumerar, uma por uma, as falhas que eu terei registrado até que todos estejam agasalhados, como avatar de anjos em suas camas. Escolher qual delas vou fingir que não existem amanhã é tarefa que mulheres de carne, osso e gorduras não dominam, apenas deuses – no masculino.
Não é possível que interrompi o prazer desse momento com meus filhos porque projetar a existência das cáries é mais importante. As bactérias dos dentinhos metidos no doce da meia-noite. E ninguém dorme.
Uma pausa pra chutar uma bola no vidro arrisca derrubar todos da janela do terceiro andar, depois esquece a colher metade babada metade suja de comida em cima do sofá.
Meus pensamentos se interrompem com o toque de um abraço: “foi bom meu tempo com você”, ele fala.
Me deito mansa nesse conforto. A bola, insistente, visita os quadros da parede pela milésima vez nesse único dia que não quer acabar. Inspiro fundo o resto de oxigênio que resta entre aroma de suor e ureia impregnado no tapete de sisal.
“Foi muito bom” digo doce. Penso em escrever em pé mesmo. Ah, esquece, não vai dar. Talvez daqui há uns 10 anos eu já possa aposentar o avental e adotar de vez a caneta.
Logo não me lembrarei quem abriu a fila das despedidas daquela noite – “já deu, te amo”- mas o golaço mais bonito da partida é inesquecível: a imagem de 3 pares de cílios repousando sobre a pele.

Por Laryssa Chaves Lima – @laryssachaves1

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