De volta para casa

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Regina acordou com o choro do bebê. Ao lado, o marido roncava. “Também com toda aquela bebedeira!”, pensou. Levantou-se, pegou o filho no berço e foi pra sala. Sentou-se no sofá, baixou a alça da camisola e ofereceu o peito. O menino logo adormeceu. Ela o devolveu ao berço e foi pra cozinha preparar o café do marido.

Enquanto cortava o pão, reprimiu um bocejo. Casara-se há pouco, largando a faculdade de Psicologia. O marido, professor de Educação Física, dizia:

— Mulher minha não trabalha.

E Regina se calava, achando que amor era isso: renúncia.

Os pais ainda a visitavam, e toda vez que iam embora, deixavam-lhe um nó na garganta, uma sensação incômoda de perda. Mas logo o ritmo da casa, do marido e do bebê abafava o desconforto. Por um tempo, ela acreditou que era feliz.

A casa sempre limpa, cheirinho de café fresco e roupa lavada. Paninhos de crochê, cortinas rendadas, vasos de planta. Seu pequeno reino.
Mas um dia, o encanto desbotou.

Numa segunda-feira qualquer de março, percebeu que faltava carne. O marido implicava quando não havia bife. Contou os trocados da penteadeira, colocou um casaquinho no filho e saiu.

Na volta, ouviu uma voz:

— Regina?

Virou-se. Era Laura, amiga da faculdade.

— Laura! Que bom te ver! — exclamou, subitamente consciente da própria aparência desmazelada.

— Onde você se meteu? Largou a faculdade, sumiu… — e só então notou o bebê. — Casou?!

— Casei, sim.

— E o trabalho? O que tem feito? Quem é o marido? Aposto que é o Marcelo, o bonitão de Engenharia…

Atordoada, Regina gaguejou, sem saber o que responder.

Enquanto a amiga falava sobre o mestrado, viagens e projetos, Regina só conseguia olhar: o cabelo brilhante, as unhas pintadas, as roupas elegantes. As suas mãos, ao contrário, estavam vermelhas e ásperas, gastas de sabão e água sanitária.

Despediram-se com promessas de se ver de novo.

No caminho de casa, Regina não conseguia tirar Laura da cabeça — nem tudo o que deixara para trás: as aulas de Psicologia, as teorias de Freud, os sonhos de estudar em Paris, o namoro com Marcelo, o incentivo dos pais. Tudo trocado por um “amor” que agora lhe pesava.

O choro do bebê a trouxe de volta. Já era hora da mamada. Abriu o portão, deixou a compra na mesa e foi amamentar Mateus.

Enquanto ele sugava o peito com força, Regina o observava: olhinhos fechados, cílios alourados como os seus, bochechas coradas. Sentiu uma onda de ternura invadi-la.

Valia a pena, pensou. O filho era seu tesouro.

Mas o marido? O que restava daquele amor?

A cada dia, sentia-se mais apagada. Lembrou-se de quem fora: alegre, bonita, cheia de planos. Agora dependia dele pra tudo — dinheiro, afeto, permissão. Sua vida girava entre panela e fralda.

Nem o corpo era mais seu. O marido exigia atenção, mas ignorava o tempo dela, o desejo dela. Tudo nele era pressa e egoísmo. Regina se deu conta: até o prazer perdera.

Fez as contas do que dava de si e do que recebia. E percebeu que saía perdendo.

Havia pouco tempo, reafirmara aos pais a felicidade do casamento. O que mudara? Teria o reencontro com Laura sido o gatilho dessa revolução interna — ou apenas a gota que faltava para o cálice transbordar?

O que quer que fosse, sentiu que aquela pele já não lhe servia. Estava na hora de recuperar a sua.

“Às vezes é preciso correr com os lobos”, murmurou, lembrando do livro que Laura lhe emprestara na faculdade.

Decidida, foi ao quarto. Pegou as roupinhas do filho, as fraldas, algumas peças suas e poucos objetos da antiga vida: o conjunto de toucador em madrepérola da avó, o relógio de ouro de quinze anos.

Tirou a aliança do dedo e deixou sobre a mesinha, junto com um bilhete curto:
“Não volto. Fui buscar o que se perdeu.”

Com o filho no colo e a mala na outra mão, correu os olhos pelos móveis, pelas plantas, pelas paredes. Numa prece silenciosa, agradeceu pela lição que ali aprendera, naquela casa que fora lar — e cela.

Saiu pelo portão sem olhar pra trás.

O filhinho nem se mexeu quando entraram no ônibus.

Para onde iriam? Isso não importava. Nem sempre é sobre o destino — mas sobre a jornada.

Regina olhou pela janela e chorou.

Não de tristeza, mas de alívio.

Estava finalmente voltando para si.

Por Gabriela Kopinits dos Santos – @gabysantoss.escritora 

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