Dizem meus pais que sempre gostei de café. O restinho que sobrava dos copinhos descartáveis, aquele pequeno depois do almoço, ficava pra mim.
Não sei ao certo desde quando, mas o café acompanha a minha vida. Faz parte dos meus dias e nele encontro reflexões de pertencimento, afeto e carinho que me são profundas e bonitas.
O café, que é bebida pra ser servida junto às mesas postas, fartas, com pães, bolos e frutas. Grandes quantidades, quente, nas térmicas, açúcar ou adoçante, perfume no ar e canecas grandes. E é o mesmo que vem sozinho, pra nos acompanhar em dias remotos, como se viesse a tentar ocupar algum tipo de lacuna não preenchida. Uma dose singela, passado pra não sobrar. Quente ou morno, forte ou aguado.
Um café pra desabafar, um café pra combinar com a fumaça.
Um café pra relaxar, outro pra tentar resolver problemas.
Depois de alguns anos, por prioridades e choros, mamadas e fraldas, ele vai frio mesmo. Esquecido. Secundário. Num gole só. É bom igual, é quase um tapa nas costas de encorajamento. O pão mordido às pressas, o café é o que nos vale. Será que vale a pena passar mais uma dose? A gente pensa.
Um café pra recepcionar a visita, pra acompanhar o bolo quente.
Um pra depois do almoço, outro pra aguçar a criatividade.
A vida vai seguindo seus rumos e o momento dele segue sendo sagrado.
Ainda sobre a infância, lembro que gostava de observar o ritual do meu pai de tomar o café. Era como um amigo que o acompanhava, a bebida já morna em um copo qualquer que ia por onde quer que ele fosse. Escritório, pátio, sala, cozinha.
Por algumas semanas, não foi fácil apreciar o meu momento do café. Eu lembrava que não precisaria oferecer a dose dele, que o café iria pra uma xícara só. O aroma que exalava da moka me arrebentava. Até o jeito de olharmos pro nada, degustando o café a dois e em silêncio, fazia apertar a saudade.
Fiquei por dias imaginando uma última vez, relembrando as tantas vezes que se pareciam umas com as outras, afinal, o cotidiano parece tão banal, a gente quase esquece que é nas entrelinhas que é construído o que temos de mais profundo. Por algumas semanas, eu lembrei dessa imagem de infância e nela me aconcheguei pra estar no tempo presente: onde ficam guardadas essas lembranças que, intocadas pelo tempo, seguem nos firmando no que somos?
Voltei ao café. Fui voltando à reflexão.
O pertencimento, nem sempre sei bem.
O afeto, sinto quase sempre.
Um café pra acordar a alma no corpo, outro passado pra quem vai pegar estrada.
Um café pra acompanhar o leite no lanche das cinco (acreditem, não passo de três xícaras de café preto por dia).
Outro intervalo do café. Esse mais abrupto. Dizem que não é um período muito bom pro café, que é melhor reduzir, melhor parar, melhor esperar. Corpo em desenvolvimento, em transformação. O paladar muda, o gosto muda. Até esqueci o tal do café, a prioridade era outra e seria passageira. Tentei por força do hábito, o paladar recusou. Melhor assim, fomos adaptando. Mais água, mais fruta, mais e mais afeto e nada de café.
Mas algo no caminho se rompeu, o intervalo cessou. O corpo mudou, num certo dia determinou. Natureza, destino, não sei.
Quem sabe? (Eu queria tanto saber… )
Ao longo de um dia difícil e tempestuoso, só quis um café.
O corpo vai e volta.
A saudade vem e vai.
O café transmuta, o pesar é duro (mas passageiro).
Diziam meus pais que sempre gostei de café. Brincava meu pai que não adoçava o dele porquê “de doce já basta a vida”. Mas muitas vezes ela sabe ser amarga.
Não sei desde quando, mas o café acompanha a minha vida. Faz parte dos meus instantes, das ideias e pensamentos. No hábito e no nosso encontro, sinto serenidade em estar junto e compartilhar, em estar só, em acreditar que tudo vai, tudo volta.
O afeto é um café quentinho.
Autora: Helena Weber.