Conto – Pano de Fundo

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Eram 6h, quando o relógio de Carlos despertou. Ela foi obrigada a se levantar e a desligar o alarme para não acordar os filhos, que dormiam profundamente. O homem, preguiçoso, demorou para reagir. Dia chuvoso. Difícil. Ela teve que acordá-lo delicadamente, com beijinhos nas bochechas barbadas, e removendo as cobertas lentamente. Carlos abriu os olhos, sorrindo. Afinal, a primeira paisagem que viu foi o seu desejo personificado em formas femininas maduras e olhos verdes. Atrevido, ignorou os minutos que corriam nos dígitos do relógio e a puxou para o seu leito, pedindo-lhe prazer. Ela ficou constrangida. Pelo horário, pelo medo das crianças acordarem, pelo profundo desejo que corria por seu corpo e que, sabia ela, logo seria encasulado, mais uma vez, sem ser satisfeito… Por fim, foi coagida e cedeu aos toques ousados do marido, recorrendo a pensamentos secretos para tornar o ato mais agradável. Realizou o ritual esperado de maneira discreta e, como sempre, muito breve, durando bem menos do que seus pensamentos secretos gostariam. Ao fim, Carlos se levantou revigorado, pronto para mais um dia de trabalho em uma grande empresa, enquanto ela permaneceu deitada na cama, por mais alguns minutos, mimetizando com os lençóis sujos e procurando algum sentido, ou sentimento, naquilo que acabara de fazer.

O barulho do marido ligando o chuveiro a tirou de seus pensamentos. Em um impulso, foi colocada de pé pela força do relógio, que lhe roubava o tempo. Os lençóis foram trocados e a cama arrumada, num instante. A tábua de passar recebeu uma pequena pilha de roupas recém-saídas da secadora. Enquanto a quentura do ferro tocava cada peça, um cheiro delicioso de café invadia a casa. Quando o marido desligou o chuveiro, a pilha de roupas se transformara em um monte de uniformes dobrados, cuidadosamente, em cima da cama. A toalha estampada foi colocada sobre a mesa da cozinha e recebeu quatro xícaras, no momento em que o pão quentinho saiu do forno. Carlos tomou o café da manhã tagarelando, misturando assuntos profissionais e elogios obscenos a sua fiel ouvinte. Quando ele terminou – meu Deus, seis e cinquenta! – sua xícara foi para dentro da pia e o resto do pão alegrou a manhã dos cães, que dormiam na garagem. Com pressa, Carlos foi escovar os dentes, enquanto os cachorros eram colocados dentro de casa para que o portão fosse aberto. O carro foi tirado da garagem, o portão foi fechado e os cães soltos novamente. O homem se despediu da esposa e partiu.

Após a saída do marido, as crianças foram acordadas. Outro ritual. Este, porém, muito demorado, lento, cansativo e nada discreto, pois os pequenos não gostavam de ir à escola. Com cuidado, os filhos foram vestidos, penteados e calçados. À mesa, Pedro derrubou o seu leite, então, uma nova toalha foi providenciada, a xícara foi novamente preenchida, o menino foi limpo e suas roupas trocadas. O chão, porém, ficou sujo, aguardando a sua vez. Enquanto os dois garotos escovavam os dentes, o bebê foi alimentado e trocado, as mamadeiras foram feitas e a mochila de fraldas preenchida, de acordo com o ofício da creche. As mochilas escolares foram revistadas, um celular secreto foi retirado de uma delas e João emburrou.

Bruno foi alojado na cadeirinha, enquanto os dois mais velhos brigavam pelo assento da janela; as mochilas foram guardadas no porta-malas; a carteira caiu no chão e espalhou os trocados que substituiriam os lanches que as duas lancheiras não receberam. As portas foram trancadas e, logo em seguida, destrancadas, porque as janelas estavam abertas e a chuva aumentava. As janelas foram fechadas e as portas trancadas novamente, daquela vez, com os cães do lado de dentro da casa. Quando o carro ligou, uma imagem decadente surgiu no retrovisor: um rosto cansado, cabelos desgrenhados, roupa comum. Entretanto, ela não se preocupou, afinal, ninguém iria notá-la.

O automóvel parou em frente à escola, no momento em que Pedro percebeu que esquecera o cartaz da aula de Ciências no quarto. Com beijos rápidos, os meninos partiram, ao som do sinal. O carro fez o caminho inverso, estacionou em frente à casa e o bebê, adormecido, foi tirado da cadeirinha. O cartaz – incompleto? – foi pego na escrivaninha e levado para o banco traseiro do veículo. O bebê, aos prantos, não quis voltar para a cadeirinha. Ele chorou copiosamente até que o carro parasse em frente à escola novamente e, apenas quando o cinto foi aberto, sorriu. O cartaz foi entregue à coordenadora pedagógica e o bebê voltou a berrar, ao ser recolocado na cadeirinha. Cinco quadras adiante, ele foi tirado do automóvel e se agarrou à mãe, fazendo manha. As duas mochilas foram retiradas do porta-malas, assim como um grande polvo de pelúcia, que logo foi abraçado pelo filho. À porta da creche, ele não quis entrar.

— O Bruninho não quer ir, mãe.

Mais um ritual. A poltrona, estrategicamente colocada à porta da creche, foi preenchida por mãe e filho. Um livro de figuras foi folheado com calma, enquanto o polvo de pelúcia adquiriu voz. A professora, de maneira amistosa, tentou levar o seu pequeno aluno, mas ele se refugiou novamente nos braços da mãe. Mais um livro. Uma música. E a canção deixou o polvo feliz, com muita vontade de ir para a escola. Sucesso. De repente, as perninhas do bebê se levantaram por vontade própria e correram para os braços da professora, sem se despedir da mãe e do polvo falante. Quando as portas do carro foram fechadas, o relógio acusou 9h, e o reflexo descuidado se aliviou por não ter sido notado, mais uma vez.

Por sorte, o veículo foi colocado na garagem no momento em que o entregador tocava a campainha, com um pacote nas mãos.

— Bom dia! A senhora é a dona da casa?

Sem saber o porquê, ela ficou ofendida com a pergunta. Os papéis foram assinados, sem nenhuma resposta verbal, e o pacote foi colocado em cima da mesa da cozinha, com algumas gotas de lágrimas. “Dona, ora… Que ousadia!”, protestou em silêncio. Antes, tivesse se referido a ela como meretriz, pois, ser chamada de dona, quando nem a própria vida lhe pertencia, era uma crueldade sem precedentes. Isso não se faz com ninguém, nem mesmo com ela, que sequer existia. O pacote, então, foi desembrulhado, o produto minuciosamente avaliado e a entrega confirmada. Os cães foram soltos e a poça de urina, que um deles deixou no piso, descansou ao lado do leite derramado, horas antes. O pacote de ração foi aberto e as vasilhas preenchidas. O pão duro, esquecido sobre a mesa, foi comido, acompanhado do café frio que, horas antes, perfumara a casa. Logo em seguida, a louça foi levada até a pia e o chão, finalmente,foi limpo. Cada coisa foi colocada em seu devido lugar. A máquina de lavar foi acionada; o lixo separado; o tradicional barulho de fritura proveio das panelas; a coordenadora pedagógica ligou para reclamar do comportamento do João; o grupo de mães da aula de inglês decidiu adiantar a entrega dos boletins; a consulta do Carlos foi marcada para o dia 12; as folhas foram varridas do quintal; o boleto da companhia de energia foi pago, as frutas picadas, os tapetes trocados, as roupas estendidas e, depois, recolhidas; o futebol do Pedro foi desmarcado; a dissertação do Carlos foi corrigida e entregue; Bruno estava com febre. Meu Deus, meio-dia! Meio-dia! E ainda não fiz nada!”, lamentou.

O automóvel saiu da garagem, no instante em que Carlos chegava para almoçar. Um beijo rápido e cotidiano aconteceu. As panelas se abriram e um prato foi amplamente preenchido. O quase-engenheiro, Carlos, falou sobre sistemas pneumáticos básicos e sobre os desafios da automação e da gestão na quarta revolução industrial. Ela apenas ouviu e concordou sem opinar, outro ritual trabalhoso. As palavras desconhecidas dançavam em sua mente, puxando fios de memória dos tempos em que estudava e de quando o termo dona era, para ela, um verdadeiro adjetivo, um predicado nominal, sem ligação com ninguém. Por fim, lembrou-se de que sabia o que era a pneumática e também sobre a revolução industrial. Entendia sobre gestão e automação, mas, desde o momento em que se tornara um substantivo pateticamente composto, perdera os predicativos. Deixara de ser sujeito. Não era mais ela mesma e dividira-se em quatro, derivara-se e, de alguma forma, perdera-se do seu eu primitivo. Era, portanto, objeto. Indireto, sempre com um obstáculo entre si e o mundo. Passava os dias cuidando de, levando a e vivendo para, sempre completando o sentido de alguém de maneira oblíqua, quase invisível. Quando o marido se calou, sua louça deu volume aos vestígios do café da manhã. A fadiga pós-prandial tirara a motivação do homem.

— Querida, você tem tanta sorte de ficar em casa, sem nada pra fazer! – Foram as palavras dele, antes de partir.

Nada. Por que uma palavra tão pequena doía tanto no peito? Pequena, porém, tão pesada que começava com sílaba tônica. Maldita paroxítona. Maldito curso de Letras, que ela nunca conseguia destrancar. Maldita língua portuguesa, cheia de regras inúteis para o mercado de trabalho, repleta de palavras incapazes de definir o que ela era e o que sentia. Em menos de dez minutos, o carro parou em frente à creche, o bebê febril saiu, relutantemente, dos braços da professora para a cadeirinha. Alguns metros adiante, os dois mais velhos ocuparam os outros assentos, extasiados pelo fim de mais um dia de aula. O veículo parou em frente à casa, porque os cães estavam soltos no quintal. A mesa foi posta, recebendo mais pratos e muita comida fresca, que foi rejeitada e demorou para ser consumida. O bebê foi trocado, alimentado, medicado.

A consulta com o pediatra foi marcada para duas horas antes da entrega dos boletins da aula de inglês; os pratos vazios foram organizados em uma pilha românica na pia; os copos ficaram sobre a mesa e multiplicaram-se pela casa; meias se espalharam pelo chão, que recebeu pequenos farelos de bolacha recheada; o videogame foi ligado e, logo em seguida, desligado, porque a coordenadora pedagógica disse que o João desrespeitou o professor. Cadernos saíram das mochilas e ocuparam a escrivaninha; Bruno chorou; o termômetro acusou 39ºC; Pedro esqueceu de anotar a lição; o grupo de mães do segundo ano B do ensino fundamental não respondeu ao pedido da lição; João não conseguia ficar sentado por cinco minutos; Pedro pediu ajuda no banheiro; João não sabia o que era fotossíntese; Bruno esquecera o polvo de pelúcia na creche; o grupo de mães respondeu sobre a lição; o leite da mamadeira ferveu e teve que ser colocado no congelador; Pedro derrubou iogurte no tapete; João ligou o videogame novamente e ficou de castigo no quarto; Bruno, finalmente, dormiu e, logo em seguida, acordou aos berros com os cães latindo para algum pedestre; Pedro precisava de guache; a mamadeira congelou; a faculdade do Carlos pediu a ele que comparecesse naquela noite; João estava com fome, porque não comeu o bife e… de repente, faltavam vinte minutos para a consulta com o pediatra.

O desespero se espalhou pelos cômodos, com mochilas e pastas sendo preenchidas rapidamente. A lição do Pedro foi colocada na pasta do João e, em seguida, devolvida ao lugar correto. Bruno se lembrou do polvo de pelúcia e chorou; a carteirinha do convênio médico desapareceu; João pegou Bruno no colo para levá-lo até o carro; Bruno vomitou, as roupas foram trocadas, e as que estavam sujas foram empilhadas na área de serviço; os cachorros se recusaram a entrar; a porta foi trancada e, logo depois, destrancada, porque a chupeta ficara em cima do sofá; o chão ficou sujo de vômito, aguardando novamente a sua vez. O automóvel chegou ao estacionamento do consultório com quinze minutos de atraso, a secretária a olhou feio e confirmou a consulta com má vontade. Ela teve que ceder seu lugar à babá que estava com a criança marcada para quinze minutos após o horário de Bruno, uma vez que ela chegara pontualmente. Enquanto os papéis do convênio eram assinados, Bruno engatinhou até as revistas, João foi resgatá-lo e o derrubou; Pedro tirou quinze toalhas de papel do banheiro e ela teve que devolver, uma a uma, em meio a olhares de reprovação.

— Acho engraçado que ela não trabalha e ainda chega atrasada na consulta! Não tem uma vez que isso não aconteça… — a secretária cochichou para a babá, pensando que não a escutavam.

O restante da conversa não foi ouvido, porque Bruno desatou a chorar e teve que ser trocado; Pedro tornou a tirar folhas de papel do banheiro; João pegou revistas, que foram devolvidas à mesa, quando teve sua atenção chamada; Pedro apanhou; Bruno foi levado para fora, porque não parava de chorar; o médico chamou babá e a criança; havia três ligações perdidas da faculdade do Carlos; a professora do Bruno disse que o polvo estava em sua casa; João mexeu no controle da televisão, que exibia uma novela que ela não tinha tempo de assistir; seu estômago sentiu falta do almoço que não teve tempo de ser consumido; Pedro estava com sono; a professora de inglês perguntou por que os meninos não foram buscar os boletins; o relógio avisou que a aula de inglês começara há vinte minutos; Bruno dormiu; a criança e a babá não saíam do consultório; a secretária reprovava cada respiração dela e de seus filhos; a criança berrou dentro da sala e acordou Bruno, que chorou; a aula de futebol foi remarcada para o dia seguinte; a mãe do Carlos perguntou se a consulta dele foi marcada; a fatura do cartão de crédito chegou no seu e-mail; Carlos mandou mensagem, pedindo-lhe que comprasse um desodorante; João queria o celular para jogar; a coordenadora pedagógica solicitou que comparecesse no dia seguinte, na hora da entrada; o médico, finalmente, dispensou a criança, chamou o nome do Bruno e, tudo o que fez, foi preencher uma receita.

De volta ao carro, Pedro e João brigaram pelo celular; Bruno não quis sentar na cadeirinha; cem reais foram gastos na farmácia; o polvo foi recuperado, na casa da professora; os meninos receberam falta na aula de inglês; os boletins de inglês foram pegos e assinados; outra ligação não atendida da faculdade do Carlos; João ligou para a faculdade sem querer, enquanto jogava no celular; o médico do Carlos adiou a consulta; Pedro queria um hambúrguer; o veículo entrou na fila de um fast-food; João não gostava de hambúrguer; Pedro derrubou o copo de refrigerante no banco; João queria sorvete. Ao chegar em casa, João jogou sorvete no chão da garagem para o cachorro lamber; o automóvel, finalmente, foi colocado na garagem; um dos cães escapou; o veículo foi higienizado; um aviso sobre o prazo do imposto de renda chegou no e-mail; a porta se abriu, as crianças correram para seus quartos e, lá dentro, o chão sujo ainda aguardava a sua vez. Assim como ela.

Roupas sujas foram recolhidas pela casa; os meninos tomaram banho; os uniformes foram lavados e colocados na secadora; o almoço frio foi comido, enquanto o Bruno comia as frutas recomendadas pelo médico; a secretária da faculdade do Carlos solicitou a entrega da monografia; Bruno vomitou o antibiótico; a agenda escolar informou que Pedro teria prova de Português, no dia seguinte; a carne não foi retirada do congelador para o jantar; Bruno pediu mamadeira; João estava com fome; o leite da mamadeira ferveu e se espalhou por todo o fogão; Pedro foi colocado para estudar para a prova; João comeu um pacote de bolacha antes do microondas aquecer o prato de comida; Bruno dormiu no carrinho e acordou, quando foi colocado no berço; Pedro não sabia separar sílabas; Bruno não tinha mais febre; João comeu todo o bife e colocou o prato cheio de comida em cima da pilha românica;o leite derramado grudou no fogão; a monografia do Carlos foi editada e finalizada.

Bruno chorou, ao ser colocado na cadeirinha; o carro foi tirado da garagem e estacionado em frente à faculdade; a monografia foi entregue; Carlos se tornou engenheiro mecânico; Bruno chorou da faculdade até o mercado, onde não havia carrinhos com cadeirinha; João pegou um chocolate; Pedro subiu no carrinho e tomou bronca do gerente; a carne foi pesada e cobrada; Bruno adormeceu de tanto chorar; o veículo não foi guardado, porque o automóvel da mãe do Carlos estava em frente à garagem; os meninos saltaram do carro e correram para abraçar o pai; Bruno acordou chorando e foi para o colo da avó; a mãe do Carlos a cumprimentou com uma cara azeda; a carne descansou no mármore da pia, entre a louça que transbordava; o chão sujo foi ocultado por um pano com desinfetante; Pedro voltou para os estudos; Bruno dormiu; o pai deixou João ligar o videogame; Pedro aprendeu a separar sílabas.

— Ficou sabendo, querida? Agora sou engenheiro mecânico! Finalmente, me formei, acabei de pegar o diploma lá na faculdade!

Carlos recebeu abraços e beijinhos delicados nas bochechas barbadas e sua mãe continuou com a cara azeda; a casa foi inundada com um cheiro delicioso de comida fresca; a refeição foi servida; a mãe do Carlos não comeu porque não gosta do tempero dela; João não quis comer; Pedro repetiu; Bruno acordou para a mamadeira das 20h; João resolveu comer; Carlos trocou de roupa; sua mãe não ia embora; as roupas de trabalho foram colocadas na máquina de lavar e depois na secadora; Pedro dormiu no sofá, antes de terminar de estudar; a mãe do Carlos não ia embora; João não queria desligar o videogame; a pilha românica de pratos começou a ser desfeita; João não queria ir para a cama; Carlos ligou a TV no canal de futebol; João apanhou do pai, chorou e acordou Pedro, que só dormia com a mãe do lado; Pedro dormiu, após quarenta minutos; João se descobriu e chutou as cobertas para o chão, enquanto dormia; a mãe do Carlos, finalmente, decidiu ir embora.

— O que houve, mãe? Por que essa cara azeda, fiz alguma coisa pra senhora?— Carlos perguntou, apreensivo.

— É que fico revoltada de ver isso, meu filho. Você trabalha o dia todo, estuda, faz tanto por essa família e ela não faz nada. Aposto que a casa continua do mesmo jeito que estava, quando você saiu pra trabalhar…

A mãe do Carlos, finalmente, foi embora e ele dormiu, antes de ver o Corinthians marcar um gol. A televisão foi desligada; o jantar frio foi comido; a louça dela, suja e solitária, estragou a beleza de uma pia, finalmente, vazia. Carlos foi para a cama sem saber dos filhos. Às 22h, Bruno tomou a segunda dose do remédio e dormiu no carrinho, em movimentos rítmicos. Pedro acordou para ir ao banheiro e chamou a mãe, que dormiu com ele na cama infantil, acordando, minutos depois, com uma dor lancinante nas costas.

Pé ante pé, deixou o quarto infantil e migrou até a sala, para se distrair de todo o cansaço de mais um dia. E que dia! O pequeno Bruno conseguiu entrar na sala da creche sem chorar, adoeceu e já melhorou. Pedro entregou o trabalho de ciências e aprendeu a separar as sílabas. João comeu um bife, ambos passaram de ano no inglês. Carlos se tornou engenheiro mecânico. E ela? Fez o quê? Mimetizou-se com a paisagem e aguardou sua vez, esperando o amanhã, assim como o chão sujo da cozinha. “Não fiz nada”, inevitavelmente, concluiu. Sem forças para evitar, sentiu a garganta ser invadida por uma tristeza familiar. Em poucos minutos, a exaustão a privou do lazer, encurtando seu momento a sós e a frustração lhe fez companhia, no momento em que o site da faculdade foi fechado – e os conteúdos das aulas permaneceram lá, aguardando a sua vez. Sem opções, foi se deitar. Os sentimentos, porém, permaneceram ali, torturados em silêncio. “E eu, fiz o quê?”, insistiu. Repentinamente, encontrou seu lugar naquela sintaxe existencial tão cheia de subordinações. Era, afinal, uma desnecessária agente da passiva. Um pano de fundo de tantas ações, personagens e histórias. Após um suspiro longo se desprender de seu peito apertado e cansado, ela – o palco daquela família – protagonizou a sua única ação: finalmente sonhou.

Por Amélia Greier

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