Dizem que quando nasce um filho, nasce uma mãe. A ideia é que mulheres podem até nascer com o que é necessário fisicamente para gerar e parir vida, mas a rotina de cuidado, o vínculo com a criança, a sabedoria para entender um serzinho que não sabe se comunicar, tudo isso depende de uma “chavinha” que liga no parto. Tem muito a ver com o carrossel hormonal que passamos nesse momento que se mostra sempre como uma virada de página na vida de qualquer um, não importa o tipo de mãe (e pai) que nos tornamos.
Mas o quanto essa mudança, esse nascimento (ou renascimento) pode ser radical? O quanto ele tem o poder de transformar alguém?
Quando penso na minha pessoa antes da maternidade, tem essa parte que se perdeu pra nunca mais voltar. Tem essa parte de mim que já não encontro, que ficou soterrada por baixo de pediatrias, fraldas, mamadas e noites sem dormir. E há uma outra parte que se perdeu por um tempo e, depois, pouco a pouco, reencontrei. Como se fosse uma velha amiga de quem me separei, mas nunca me desvinculei. Alguém que me conhece de verdade e profundamente, com quem já discuti, a quem critiquei e admirei de formas tão diversas e intensas que nem cabe aqui esmiuçar. É essa mulher que continua sendo a base da mãe que sou.
No filme Canina, a busca da personagem por essa mulher encontra caminho através da animalização. Para se reencontrar, ela precisa se perder totalmente de sua racionalidade humana e se render ao instinto (materno) que grita (literalmente) dentro dela pedindo por liberdade. Sentindo-se presa na rotina da maternidade, que ela mesma escolheu, sua liberdade não pode vir por outro caminho que não o da força. Uma força que ela direciona para fora mas, ao mesmo tempo, para dentro de si mesma. O processo de reconhecer que ela aprisionou a si mesma quando escolheu ser “apenas mãe e dona de casa” (todas as aspas aqui) é um ato violento contra si mesma.
A voz que ela soterra, o grito que cala já aparece na primeira cena. Ao encontrar uma amiga no mercado (amiga essa que ficou em seu lugar), ela quer gritar toda frustração de ter abdicado da carreira, mas apenas repete que “sim, ama ser mãe e ficar em casa com o filho o tempo todo”. É uma cascata de emoções que vem se acumulando ao longo do caminho e que, como é de se esperar, transborda como toda força da natureza.
Nas falas da personagem podemos encontrar muito, aliás, de tudo aquilo que calamos diante de uma sociedade que idealiza um modelo de mãe impraticável. O fato do parto em si ser algo animalesco que, ao mesmo tempo, fere e fortalece ambos os seres que surgem dele (mãe e filho) vem à tona em um diálogo primoroso de reconhecimento de duas verdades. A primeira que ninguém na sociedade (nem nós mesmas) dá a atividade de maternar a devida importância e grandiosidade. E depois que se somos seres que têm o poder de gerar vida e trazê-la ao mundo, deveríamos reconhecer nisso um selo de fortaleza e poder comparável a poucas outras coisas, algo de fato divino e transcendentalmente poderoso. Transformada em cão, ela se reencontra, consegue enxergar o que precisa e, depois de retomar as rédeas da própria vida, segue em busca da felicidade.
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