Carta aberta para uma mãe narcisista, filha de uma mãe narcisista e mãe de uma mãe narcisista

Carta aberta para uma mãe narcisista, filha de uma mãe narcisista e mãe de uma mãe narcisista

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Por Thainá Gonçalves – @Thainaa_chandler

As marcas ficam para sempre e o ciclo é quase inquebrável, eu só queria que ele se quebrasse. 

Hoje tive um sonho, ou melhor um pesadelo, acordei com o coração disparado, uma conhecida dor no peito e uma tristeza que não cabia no mundo. O conteúdo? Nada demais, apenas um dia normal do meu eu adolescente, você agindo como sempre agiu comigo, você sendo você. Era só uma ficção misturada a uma lembrança antiga e mesmo assim doeu pra caramba.

Eu sei que em parte você não tem culpa, foi tão vítima quanto eu, teve percalços maiores que os meus, mas você também tinha escolha, escolhas, e decidiu destruir qualquer coisa boa que poderia haver em mim. 

Eu não gosto do que eu sou e não sei como eu poderia ser se tudo tivesse sido diferente, mas acredito que ninguém deveria ter como maior medo ou pesadelo a própria mãe. Sinto muito que tenha sido assim e sinto ainda mais que isso tenha me afetado a ponto de eu me tornar como você, a ponto de eu me tornar como sua mãe.

Somos mulheres que fomos impostas a destinos que não mereciam e como resposta reproduzimos nossas feridas em pessoas indefesas que tanto precisavam de nós. Eu não sei como vocês se sentiram, falo por mim, notar isso dói todos os dias. E mesmo após anos de terapia, isso ainda é uma ferida aberta, sangue que não estanca. Tenho calafrios de pensar que sobrevivi, às vezes preferia que não, já tentei eu mesma mudar isso, era apenas uma saída de desespero.

Hoje, quando penso no que fui submetida, não importa o quão profunda seja a tristeza, penso que você também passou por isso e acaba não sendo algo pessoal comigo, o que não muda o dano causado, mas ameniza o que penso e sinto. 

Após seguir os mesmos rumos tão seus no caminho tortuoso da maternidade e não conseguir mudar os passos, escolhi mudar todo o trajeto, não precisamos de outro adulto no mundo se sentindo como me sinto. Se não sou capaz de fazer diferente estando perto, que eu seja diferente estando longe.

Essa também não foi uma decisão fácil e me persegue todos os dias, também causa pesadelos e faz eu me sentir tão, tão pequena e indigna – nem sei de que. 

Hoje é mais um dia em que os ecos de mulheres feridas antes de mim me atingem com mais força, em dias assim, só consigo lamentar por todas nós, sonhar que tudo tivesse sido diferente e desejar com todas as minhas forças que tantas outras (todas elas) meninas não passem por isso, nossa primeira referência não deveria ser a pior de nossas vidas.

Compreendo, ainda, que falo de um lugar privilegiado de conhecimento no qual eu posso reconhecer os processos pelos quais passamos, diferentemente de vocês.

Lugar esse construído por vocês, mesmo que não intencionalmente, com todo o distúrbio de vocês e apesar dele, ainda fizeram algo que para que algum detalhe da geração anterior não resvalasse na próxima: minha avó, filha de mãe alcoólica, manteve, com unhas e dentes, os filhos longe de bebidas alcóolicas e vícios, isso fez deles trabalhadores; minha mãe, cujo maior parte dos irmãos não terminaram o ensino fundamental, que só pode terminar o ensino médio com mais de 40 anos, se importava que o meu ensino médio fosse terminado na idade ideal. 

Foram pequenos detalhes em meio a tanto ódio enraizado, mas me permitiram chegar onde estou e olhar para trás sobre a lente que olho. Sabendo o que sei e sabendo o que entendo, só me resta acolher, eu mesma, o que sinto e trabalhar para um futuro diferente. 

Eu jamais poderia olhar para vocês e dizer o que penso, dizer que perdoo e que sinto muito, sou a ovelha negra da família, nada que eu diga seria bem recebido.

Apesar disso, gostaria de deixar registrado para todos ou para ninguém, que alguém ouviu a dor de vocês, que alguém reconheceu as verdades que vocês não contam para ninguém, são também sobreviventes e fizeram o que deram com o que tinham.

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