AHIMSA

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Enfiar as mãos nos grãos à venda no mercado a granel. Tirar todos os itens de dentro da bolsa tiracolo, limpar tudo, e então retornar cada item para a bolsa. Quebrar o creme brulée. Assistindo a “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, essas imagens me fazem flutuar, como a toalha na mesa ao ar livre, ao sabor do vento de outono, na cena inicial do longa. Tento lembrar dele quando o corpo parece não saber de onde veio ou para onde vai, pois essas cenas me fazem pensar no quanto podemos desfrutar desses pequenos prazeres e como isso pode nos trazer de volta os pés ao chão, desconectando o corpo e a mente dessa sensação de abismo e voltando a um lugar de acolhimento. O mundo parece ficar sob controle. Afinal, Amélie emerge de uma infância neurótica para um futuro fabuloso.

Quando eu era pequena, costumava esperar pelo Papai Noel e pelo Coelho da Páscoa. Eles chegavam todos os anos e tudo parecia estar, sempre, sob controle no mundo. Tudo em seu lugar e em seu tempo. A certeza das coisas é algo reconfortante, te deixa seguro de que o que importa não vai mudar. 

Nas semanas que antecediam a celebração do renascimento, costumávamos pintar casquinhas de ovos de galinha, que depois minha mãe enchia com amendoim doce. Era mágica a sensação de estarmos reunidos, todos os irmãos, em torno da mesa da sala, pintando os ovos. Cada um ao seu estilo. Até hoje mantenho essa tradição, agora com minha filha. E o mundo sempre parece estar em seu devido lugar, em seu devido tempo quando as mãos estão a serviço de algo tão belo, singular e simples.

Quando a semana começou, não tinha como eu saber que, agora, estaria nessa situação. Parece que o mundo virou de cabeça para baixo. Não, não se trata de um meteoro vindo em direção à Terra, ou de um emprego perdido, nem da Terceira Guerra Mundial estar iminente. É a pura incerteza do dia. A semana começou com notícias trágicas na TV. Crianças viraram alvo de massacres cruéis. 

Eu queria estar falando apenas de cenas idílicas. Mas a verdade é que minha mente vagueia e volta, insistentemente, ao fato de que minha filha, que semanas atrás pintava comigo suas casquinhas, está na escola. Longe de mim. Não posso estar com ela o tempo todo, nem agora, nesse período sombrio, nem em todos os momentos da vida em que ela abrir suas asas e voar. Não tenho poder de impedir que se machuque, assim como não terei remédio para certas dores. Só o que posso fazer é ensiná-la a lidar com essa vida incerta e encontrar sua própria forma de se manter bem, e ser capaz de construir seu próprio “cantinho de acolhimento” como os dos personagens do filme.  

Depois que ela comeu o doce dentro da casquinha, ensinei a ela outra coisa que sempre fiz quando criança: quebrá-las. Sentir a casca rachando, ouvir o “crreckk” junto ao “oc” do objeto oco e delicado quando a gente o comprime entre as mãos. Não há teoria científica que explique por que isso é tão bom. Melhor ainda é ouvir o riso dela, quando faz isso pela primeira vez e, me abaixando sobre ela, sentir seu cheiro. O cheiro do filho deveria poder ser envasado, ouvi alguém dizer um dia. Não pode. Nem é possível prever todos os amanhãs. Pedaços de vida gravados na memória. Isso é o que permanente, isso ninguém nos tira. Não preciso de fotos para lembrar perfeitamente do dia em que ela nasceu, que veio pela primeira vez aos meus braços. Seu olhar, brigando comigo, parecia dizer “estava tão bom lá dentro, mãe! Por que me trouxe aqui para fora?”

Posso responder a essa reclamação de minha filha voltando à Amélie. Não sei o futuro dela, mas pode ser fabuloso. E posso ensiná-la a encontrar seu centro nos pequenos prazeres que escolher no mundo. Cheiros, sabores, cores e brilhos: no olhar, na luz do dia; na memória. O mundo gira incessantemente e não tenho controle nenhum sobre isso. Ansiedade. Mas agora, nesse exato instante, decido voltar a essas memórias e, como se fossem remédio, elas fazem meu coração desacelerar, minha mente se acalmar, meu “eu” voltar ao centro. Ela volta da escola algumas horas depois disso. E seu sorriso, e seu abraço, e sua piada de criança sobre a “Cotia, a tia dos animais” fazem, e sempre farão, meu mundo voltar ao centro.

Este texto também está disponível na 13ª edição da revista.

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