A vida secreta das aranhas mamíferas

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Texto vencedor do 1º concurso Escrevivências Maternas da revista Mães que Escrevem.

Por Victória Silveira

Sentada na cama da minha filha, enquanto aguardo a chegada da fada dos sonhos para revezar comigo o turno do cuidado, lembro-me de Nidaba e escrevo com a garganta. Crio histórias de fazer chegar o sono e o descanso.

Repasso as etapas do dia, que deixou lembranças em minhas pernas, agora pesadas e pegando fogo, semelhante à cabeça. Houve gritos e, em meio a eles, uma tentativa frustrada de ensinar. Respiro, conto até dez, mas os algarismos não redirecionam a raiva e o nó na garganta se desata em berro. Desamparados, os mamíferos gritam pela vida

Béee, 

muuu, 

buáaa,

por que você quis ser mãe?

CHEGA!

Deus interpreta “chega” como um convite de boas-vindas e manda novas tormentas. É preciso apresentar os ovos secos à Santa Clara para que cessem (as mulheres tendem a interpretar com mais profundidade). Enfim, a criança dorme, mas Eco conserva o berro que me persegue até o fundo de minha toca, onde sou confrontada por minha aparência exausta no espelho: vejo a famigerada cara de mãe cobrindo meu rosto. 

por que você quis ser mãe?

Lembro-me do Deus do aqui, descrito pelo poeta, e percebo que o Tal também não foi criado à semelhança da minha imagem.

O sono aguarda do lado de fora das muralhas da dúvida. Sou impedida de dormir até que encontre uma resposta. Por que quis ser mãe? A resposta colérica era um líquido amargo. Retido na garganta, empedrou, tal qual o leite no peito que não serviu de alimento. Para desempedrar, é preciso ordenhá-lo para fora. Ordeno, então, por meio da escrita: fui mãe pela loucura, pelo sonho e pela lembrança.

As águas têm memória. A água do ventre de minha mãe me alimentou com a lembrança de que esse órgão é o templo da vida, logo, Deus só poderia ser Mulher. Mas no meio do caminho, tinha uma Bíblia, mal traduzida e corrompida por algumas interpretações enviesadas. O pai passa um ano ausente e quando volta, presenteia minha filha com o livro do Deus homem. Em nosso momento de leitura, ela, aprendendo a ler, capta a palavra “Deus” na capa do livro que tenho em mãos e me pergunta se estou lendo a bíblia. Mostro a capa e ela lê:

quan-do de-us e-ra mu-lher

  • Quando deus era mulher? Mas Deus já foi mulher?

A história da noite, a história de convidar a fada do sono para a troca de turno, torna-se, então, as lendas esquecidas de povos em que a reverência a uma deusa, era sinal da posição social que as mulheres ocupavam. Comerciantes, artistas, chefes, líderes, livres.

O sono chega e sonhamos com a memória de uma terra possível. 

*

Pela manhã, as mães acordam na companhia dos galos e despertadores antes que o Sol nasça, e preparam o café de seus filhos. A fada se despede e início o primeiro turno. Antes de iniciar o terceiro, busco minha filha na casa da minha mãe. A tarefa do cuidado se divide entre as mulheres, no amplo espaço da falta dos homens.

  • Sua filha disse que você tá lendo um livro estranho…
  • É mesmo? Estranho como?
  • Com um nome estranho… Alguma coisa de Deus
  • Quando Deus era mulher?

Diante da pia, com as mãos ensaboadas, medo nos olhos e uma tornozeleira na perna, ela me olha, intrigada, e responde:

“Mas… Deus NUNCA foi mulher.”

*

Lembro-me de quando você contou que, na sua infância, quando morava na casa da patroa, você limpava o chão com gasolina. O herdeirinho subia nas suas costas, como se você fosse um cavalo. Olho para sua coluna curvada e a tornozeleira grotesca, e penso que para quem passa a vida toda com o peso da bota nas costas, é difícil se habituar à ideia de liberdade. Você recusou a possibilidade de imaginar um mundo em que fomos honradas, cegou à nossa história para aceitar, sem questionar, a verdade deles. Você fechou os olhos para os aprendizados de suas crias em respeito aos seus algozes. Qual o sentido de uma deusa mulher permitir que passássemos por tudo isso? A não ser que, à imagem e semelhança do deus homem, ela também tenha saído para comprar cigarros. Mas nesse país, é muito mais provável que a Deusa também tenha sido assassinada pelo homem que dormia ao seu lado, afinal, a honra dEle prevalece à vida dEla, e você, mãe, defende a honra deste deus homem com um quê de orgulho e ar de cão alegre ao agradar o dono, dizendo que Ele jamais foi Ela, cumprindo o papel que te cabe já que, sendo pecadora, tudo o que você pode fazer na vida é se redimir, defender e limpar eternamente o chão com gasolina enquanto te montam as costas e acorrentam seu tornozelo.

Como se, ao orgulhar o pai desaparecido pelo ato valente de demonstrar completa submissão e obediência, talvez, ele visse o seu valor

E voltasse.

Talvez ele volte. Após um ano desaparecido, com um livro debaixo do braço, negando toda a história de sua classe.

*

Por que você quis ser mãe? Será que você realmente quis?

Eco, lá do fundo da caverna, segue tentando nos dizer algo. Minha filha faz a pergunta que eu nunca ousei direcionar a você, porque, no fundo, sei a resposta. Você não foi mãe pela loucura, pelo sonho e pela lembrança, pois calou a lembrança, fechou os olhos para o sonho e desprezou a loucura. Você foi mãe pela liberdade, pois inventando a própria maternidade, se desgarrava das teias de sua mãe. Mas o perigo de mirar na liberdade, sem considerar a lembrança, o sonho e a loucura, é não perceber que os cordéis permanecem agarrados às costas, manipulando os movimentos como uma marionete infinita. 

Eu nasci com hora marcada: a que coube melhor na agenda do médico e na sua vida, para me manter sempre à sua sombra. Diferente de mim, minha filha nasceu no tempo dela e o pai cortou o nosso fio, que eu trouxe comigo. Não nas costas, mas no ventre. E nessas noites, quando o grito sobressai, eu pego o cordão e teço novas histórias de fazer dormir.

Este texto também está disponível na 13ª edição da revista.

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